De que violência estamos falando? O dito e o não dito que ferem os códigos religiosos
A superação da violência descabida e espontânea tem a ver, sobretudo, com um nível de consciência e respeito sobre o que é o outro e a nossa relação com ele. Pensar dinâmicas e estratégias que facilitem a luta contra a hostilidade gratuita passa pela educação e também por #ConhecerParaRespeitar ,de que tanto falo em publicações na Senso e em palestras e atividades em todo país, quando tenho oportunidade.
Quando o assunto é as religiões de matriz africana, essa violência se desdobra em diversos níveis e vai desde objetiva, a que deixa marcas físicas, até a subjetiva que tem contornos mais “suaves”, mas igualmente danosa.
A violência subjetiva nasce da insuportabilidade da diferença, da incompreensão do que, de fato, seja o rito, o fenômeno religioso em si, a história, o significado. Isso, aliado ao desrespeito, que muitas vezes tem pano de fundo racista e de desvalorização do que é do negro, acaba assumindo um caráter mais “civilizado” por que se manifesta, nem sempre, por sinais explícitos de embate que leva às vias de fato. Entretanto, esse tipo de violência que se manifesta no desprezo, na má vontade, no olhar condenatório quando andamos nas ruas das cidades com parte do nosso sagrado: vestes, contas, cumprindo nossos preceitos é percebida e igualmente machuca.
Há nos dois tipos um caráter fascista, danoso e condenatório, mas creio que a subjetiva traz uma dose de covardia maior porque é do campo da sutileza, do não-dito, do inesperado e que, portanto, não da a(o) violentada(o)o direito de defesa instantânea. O mecanismo discriminatório que se emprega ao não sentar ao lado de alguém do candomblé no ônibus, ou ao falar de canto de boca que o sangue de jesus tem poder ou pronunciar o famoso “queima senhor”(como se o diferente tivesse que ser destruído, logo por um Deus que criara a natureza diversa)dá o tom do quanto a pessoa que faz uso desse tipo de violência , quer ser notada ,passar a mensagem ,mas sem postura de desgaste , uma ação que beira à covardia, uma vez que não se assume a atitude opressora que deseja ter no momento.
Se ela é expressa de forma tão sutil, por que afeta? Pelo fato de que, sem palavras ,muita coisa se diz. A mensagem é enviada e compreendida por quem sofre tal violência e pior, ela é facilmente desmentida através da sentença “você entendeu errado” ou eu “ate tenho amigos candomblecistas, umbandistas” como forma de esconder o real desgosto pelo momento vivido.
Pode-se dizer que há uma falha nos distintos códigos religiosos que favorecem essa escalada da violência? Acredito que sim em vários sentidos. A comunicação entre fiéis e sacerdotes , no mínimo não esta sendo bem feita. Se entendermos que a comunicação é viva e simula a consciência de outrem, ou o recado não esta sendo dado ou não tem produzido efeitos. Obviamente não credito às religiões a culpa pela explosão do desrespeito e violência, mas no mínimo elas têm deixado a desejar no aspecto de contribuição social e formação dos indivíduos.
Como a ópera Alabê de Jerusalém alerta , parece que as religiões fugiram do seu papel de archotes(que serve de iluminação), de auxílio na conscientização de quem é o indivíduo na sociedade ,para empunhar cassetetes e disseminar o desrespeito que , em alguns casos, chega ao ódio.
O pensamento guiado pela espiritualidade , seja qual for, constitui no indivíduo ou grupo uma consciência de pertencimento, de afeto, de cuidado com a casa comum, que é o universo, e se ele não tem sido capaz de auxiliar as pessoas nessa reflexão alguma coisa está aquém na funcionalidade das religiões.
Acredito que as religiões de matriz africana sofrem mais com a violência subjetiva porque são a expressão de um povo negro que resiste ao racismo instrumental, mas tantos outros códigos religiosos igualmente sofrem e a base comum está em não sabermos lidar com o diferente.
Pensar em estratégias para a superação de qualquer tipo de violência passa, necessariamente, pela ampliação do conhecimento, que é libertário, que dissipa pré-conceitos, o que deveria ser premissa básica da nossa sociedade.
A não uniformidade é que faz o nosso caótico mundo ter graça, mas esse ensinamento precisa funcionar numa tríade que nem sempre conversa: família, educação, e consciência espiritual.
Tat’etu de Nkise, iniciado há 13 anos no candomblé de Angola com a djina Kamugenam, membro do N’zo Atim Oya Oderim. Jornalista, especialista em Comunicação e Informação Educacional, mestrando em Comunicação (UFMG) e jornalista responsável pela Revista Senso.