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Mestre Flósculo Guimarães e o reacender da chama sagrada do São João do Acais

Mestre Flósculo Guimarães e o reacender da chama sagrada do São João do Acais

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A Jurema Sagrada do Acais / Foto: Henrique Genecy

Na noite do dia 16 de Junho de 2019, uma chuva de grande porte caía sobre o litoral pernambucano e paraibano, deixando as vias públicas inundadas, rios transbordando e um elevado grau de insegurança para quem desejasse pegar a estrada. A chuva era tanta, que a visibilidade para quem dirigia tornou-se comprometida quase que completamente. Neste contexto climático, membros do Terreiro de Jurema Casa das Matas do Reis Malunguinho, seguros e convictos dos recados da espiritualidade, seguiram a ordem dada pelo Reis Malunguinho para que fossem ao Acais, finalizar um ciclo ritual de consagração de um príncipe mestre dedicado a um vaqueiro na Jurema e também homenagear o Mestre Flósculo Guimarães, com luz, forró e celebração ao Senhor São João Batista, patrono da Igrejinha feita por Maria do Acais, que tem provável data de fundação em 1932, como está exposta em sua fachada frontal.

Fomos à localidade após um conjunto de mensagens espirituais que recebidas pelo afilhado Diviol Lira, sanfoneiro, para colocar uma pequena chama de fé e amor no reacender do São João do Acais, celebração que no Acais em décadas anteriores era conhecida como “festa dos Senhores Mestres”, realizada com primor por Flósculo.

Desde 2007, e com maior presença a partir de maio de 2008, que o Quilombo Cultural Malunguinho (QCM), realiza atividades de empoderamento e fortalecimento do patrimônio cultural da Jurema no Acais. Podemos lembrar do primeiro movimento existente nessa localidade ocorrido na segunda data acima citada, o I Encontro de Juremeiros em Alhandra, promovido pelo QCM, pela Sociedade Yorubana do professor Eduardo Fonseca Junior (in memorian) e sua esposa Josy Garcia, e pelo parceiro Jorge Roseno. Desde a origem de toda essa movimentação que revolucionou aquela localidade, o túmulo do Mestre Flósculo Guimarães sempre esteve ali, silenciado e sem quaisquer informação que pudesse nos acrescer de saberes sobre quem ele havia sido em vida. O fato era que não sabíamos quase nada sobre o Acais, em 2008, muitos e muitas juremeiras e juremeiros achavam que esse local sequer existisse, pois na cosmovisão da Jurema, Alhandra (ou “Lianda”, “Alianda”, para os mais velhos) era um lugar mítico, e não geo-político-cultural existente.

Esse mistério, pelo menos para os pernambucanos, foi desbravado com nossa ida pela primeira vez no local, levando dois ônibus lotados de juremeiros e juremeiras, quando pudemos inaugurar a reconstrução da Capelinha do Mestre Zezinho do Acais, que localiza-se à beira da estrada e ir ao próprio Sítio do Acais, local onde ainda existia nesse tempo, as antigas árvores sagradas (as Cidades), plantadas para louvor à ancestralidade da Jurema. Ali, perante àquela bela paisagem espiritualizada e que mostrava a força da ciência presente por si só, realizamos a primeira gira de Jurema coletiva no local, com pessoas de diversos lugares, inclusive de João Pessoa e da própria Alhandra, como Mãe Biu (Severina Chaves dos Santos) mestra juremeira já falecida, Nina Paulino (filha biológica da Mestra Jardecilha) e seus filhos, Mãe Judite, etc. Infelizmente, poucos meses depois do I Encontro de Juremeiros em Alhandra, a casa e as cidades da jurema (entre outras árvores sagradas e centenárias) foram destruídas pelo recém proprietário daquelas terras, apagando para sempre o patrimônio material construído com tanto amor por Maria do Acais e pelo seu filho Flósculo e família.

A partir desse tempo, o silêncio dos mestres estabeleceu-se no local, restando apenas a Igrejinha e o túmulo atrás da mesma, convivendo com a injustiça do racismo religioso e crime contra o patrimônio cultural e ambiental do povo de terreiro por esses mais de 11 anos de omissões do Estado.

Foram inúmeras atividades realizadas por diversas pessoas em frente e ao redor da igrejinha do Senhor São João do Acais ao passar dos anos, e a incógnita sempre se fazia presente. Pairava um silêncio grande sobre ele e sua obra naquela região. Esse tão desconhecido Mestre, que diferente de todos os demais senhores mestres enterrados na localidade, não teve plantado um pé de Jurema em cima de seu túmulo, mas sim um tronco feito de cimento, acertadamente simbolizando sua relevância enquanto memorável membro do clã do Acais, também apontando uma possível preocupação com o fim das Cidades da Jurema (árvores encantadas), que foram destruídas 50 anos após seu falecimento, tendo a memória da flora encantada da região violentamente extinta, como já citamos anteriormente. Portanto, temos esse monumento de cimento, um tronco que não daria mais frutos, flores, folhas, não crescendo e multiplicando-se, apenas sendo um ícone resistente ao tempo para que sua memória não fosse apagada como foram quase todas reminiscências materiais do local. Soa como triste essa constatação, contudo, esperamos que futuras pesquisas nos tragam melhores informações e conhecimentos sobre os motivos reais dele ter sido “homenageado” dessa forma, tão diferente da maneira tradicional de seus antepassados.

O “silêncio dos mestres”, foi rompido em 2010, com a publicação generosíssima e fundamental para todo o povo da Jurema Sagrada do professor Dr. Sandro Guimarães de Salles, o livro À sombra da Jurema Encantada – mestres juremeiros na umbanda de Alhandra, publicado pela Editora Universitária da UFPE com incentivo do Fundo de Cultura do Estado de Pernambuco – FUNCULTURA. Essa dissertação de mestrado transformada em livro, nos revelou quem fora Flósculo e sua importante obra no Acais. Neste texto, usamos em especial as informações contidas no seu subcapítulo “O clã do Acais” (p. 63-79), que trata da história dos personagens ligados ao Acais aqui citados, elencaremos informações gerais contidas nos primeiros capítulos do livro. Não usaremos as normas gerais da ABNT para facilitar aos interessados(as) a leitura e compreensão das linhas abaixo escritas, afinal, acredito ser necessária a democratização e facilitação/acesso de informações de pesquisas qualificadas sobre a Jurema Sagrada.

Alhandra e o Acais – uma história do povo da Jurema

A aldeia missionária dos Arataguis, tornou-se uma das primeiras aldeias que mais se desenvolveu na Paraíba. Aos cuidados da ordem jesuíta, depois, ordem franciscana, era intenso o fluxo de índios oriundos de várias localidades do estado, inclusive do sertão paraibano. Segundo dados, eram cerca de 766 no ano de 1804, quanto ao ano seguinte somou-se cerca de 1.372 índios (MEDEIROS, 2007). Predispostos aos mandos e desmandos das autoridades coloniais, a mão-de-obra indígena se fez necessária nas lavouras, engenhos e na construção de obras públicas. De simples aldeia missionária, ascendeu-se a categoria de vila, deixou de ser administrada somente por autoridades religiosas, passando então a ter o controle das demais autoridades. Contudo, o índio deixa de obedecer ao padre, passa a obedecer a lideranças civis, como os caciques locais, onde o mais relevante fora Inácio Gonçalves de Barros, irmão de Maria Gonçalves de Barros, a Maria do Acais primeira e pai de Maria Eugênia Gonçalves de Barros, a Maria do Acais segunda, a celebrada mestra da Jurema.

Somente em 24 de abril de 1959, oficialmente o distrito é desmembrado da capital João Pessoa e Alhandra passa a existir como município, deixando de chamar-se Aldeamento Aratagui definitivamente. Hoje, a cidade comemora 60 anos de emancipação, com um prefeito evangélico e restando cinco terreiros de Jurema e umbanda: 1 – Centro Espírita de Jurema Mestra Jardecilha; 2 – Associação Espírita dos Juremeiros de Alhandra, que é o terreiro de Mãe Judite e da Falecida Mãe Biu de Alhandra; 3 – Terreiro de umbanda e Jurema de Pai Edu; 4 – Terreiro de Pai Fabrício e 5 – o recém inaugurado Templo dos Doze Reinados da Jurema.

Do período colonial, com o processo de distribuição aos mandatários de terras, segundo registros oficiais em 1899, Maria Eugênia Gonçalves Guimarães, herda de sua tia “Maria do Acaes 1ª” uma das fazendas, a princípio batizada de Vila Maria Guimarães, mais tarde tornou-se Acais, já administrada e bem sucedida no ano de 1908.

Maria do Acais – entre Alhandra e Recife, veredas de uma história da Jurema

Mestre Flósculo Guimarães foi filho de Maria Eugênia Gonçalves Guimarães, Maria do Acais segunda, como já citado acima. Falecida em 1937, cinco anos após a igrejinha ter sido erguida, ela, que nascera no Acais, após casar-se com o português José Machado Guimarães mudou-se para Recife provavelmente pelos idos de 1908, habitando no bairro dos Coelhos, local bem próximo ao centro comercial da capital pernambucana, onde ainda hoje existe sua casa original (já vendida, onde hoje é uma madeireira ocupada por pessoas que não tem mais nada a ver com sua história) na rua José Mariano. Maria do Acais, conhecida também como Maroca Feiticeira (no bairro dos Coelhos e ainda chamada de “vó Maroca” pelos seus ascendentes), tinha um forte trabalho de Jurema onde morava oficialmente, sendo muito procurada e reconhecida. Além de cumprir seus afazeres religiosos, cuidava dos filhos e filhas, aos moldes machistas tradicionais de décadas passadas. Foi sepultada no Cemitério de Santo Amaro no Recife.

Recebeu a doação das terras de sua tia por volta de 1910 por ter as devidas preparações religiosas para dar continuidade à tradição da Jurema da família, sendo já no Recife respeitada e temida. Após herdar a fazenda, vivia metade do mês no bairro dos Coelhos e a outra metade no Acais, sendo assim pelos 27 anos que em Alhandra reinou absoluta como grande sacerdotisa catimbozeira (1910-1937).

Isso faz-nos perceber que Alhandra, assim como Recife, eram locais de grande importância para a prática tradicional da Jurema Sagrada dos Gonçalves de Barros (família herdeira do Acais). A mitificação ou teoria de que Alhandra seria unicamente o berço da Jurema não se sustenta, pois existem muito mais relações entre Recife e Alhandra do que podemos supor historicamente.

Se Maria do Acais já era juremeira afamada em Recife, antes mesmo de herdar as terras, isso significa que seu saber religioso se construiu também em Pernambuco, com as relações e práticas dos terreiros onde construiu sua vida social. Não existem dados sobre quem havia a orientado nos caminhos religiosos em Recife. Sabemos que ela, antes de 1910 já tinha forte ligação com o Acais, segundo documento que registra em 1908 sua ida à Alhandra para cuidar de sua tia (doadora das terras do Acais) gravemente doente, trazendo-a para capital pernambucana com intuito de tratar de sua saúde. É importante também observarmos que a distância entre Recife e Alhandra é de 86,5 km, levando nos tempos atuais de carro, aproximadamente uma hora e trinta minutos de estrada pela BR 101, e que no passado, décadas de 1910 à 1930, o translade não era fácil nem rápido para que essas idas e vindas fossem tão corriqueiras como sugerem os documentos, levando em consideração que a via rodoviária que liga Pernambuco e Paraíba, fora construída entre as décadas de 1950 à 1960, e só duplicada na década de 2010.

Até então a história não foi contada por completo, devemos aguardar os próximos capítulos de pesquisas em andamento sobre o tema. Nesse contexto, Flósculo tomava conta de tudo no Acais, enquanto sua mãe estava no Recife, cuidando da complexidade de seus afazeres religiosos e pessoais.

Mestre Flósculo Guimarães – o senhor da festa do fogo do Acais

 Dos nove filhos de Maria do Acais segunda, apenas Flósculo seguiu a tradição da família, mantendo-se morando na fazenda Acais, dando continuidade aos rituais de Jurema após o falecimento de sua mãe (1937), inclusive administrando toda localidade, regendo seu período mais próspero.

Flósculo, palavra que do latim significa “pequena flor”, sugere uma relação com a flor da Jurema (mimosa hostilis), árvore comum do sertão nordestino que dá nome a religião e nela consiste toda sua cosmovisão. Inclusive, dentro desta tradição, a flor da Jurema tem importante papel simbólico, pois mesmo pequena tem grande fundamento ritual. É curioso percebermos que em décadas anteriores, nomear um rebento masculino com um nome de significado poético, delicado e incomum não poderia ser por acaso. As flores sempre antecedem as chegadas dos frutos, sem elas não ocorre continuidade da espécie.

Herdeiro direto das terras de sua mãe, que já havia transformado o espaço em centro religioso e mítico de cura e bons catimbós, reconhecido em todo Brasil por sua ciência e fé, era um território de rara beleza, morada dos senhores mestres, onde tudo era celebrado com festa sob o acender de velas, fogos de artifício, rituais e oferendas. Na parte mais alta do terreno foi erguida com esforços próprios de Maria do Acais e Flósculo a capela de São João Batista (não sendo essa capela pertencente oficialmente à Igreja Católica), que, além das celebrações familiares, anualmente era celebrada uma missa no mês de março, onde rezava-se o terço com moradores do lugar e das propriedades vizinhas. Também eram na capela realizados os “cultos dominicais” e o “encontro de jovens” articulando toda comunidade adjacente.

A capela de São João no Acais é um lugar de incontestável importância dentro da vivência da Jurema perante as décadas consequentes. Todas as ações registradas e contadas pelos antigos, demostra a ligação daqueles juremeiros com o catolicismo popular na intenção de conseguir legitimidade e respeito perante a sociedade que não aceita até a contemporaneidade o catimbó como religião.

Junto as referências e tradições indígenas que marcaram outrora esse lugar, podemos perceber o quanto é evidenciado uso de cânticos católicos nos rituais, pela presença de utensílios e imagens de santos católicos, que ao lado de maracás, cachimbos, fumos e outros objetos litúrgicos compõem as mesas de catimbó. Esses elementos, são transformados em objetos religiosos de sentido diferente da forma como são usados nas igrejas, assim, criando um tipo de religiosidade totalmente própria, inclusive condenada e deslegitimada pela própria instituição católica. O catolicismo popular envolvido nessa religião não compõe a matriz da Jurema, não deve ser entendido como elemento de fé da Jurema, mas sim de construção colonial sob a matriz indígena, com intenção de catequização por vias violentas e que acabaram ressignificando as práticas litúrgicas dos nativos pelos próprios nativos no contexto da tortura, escravidão e etnocídio (L’ODÒ, 2017).

Seu Flósculo, como era conhecido, era casado com sua prima Damiana Guimarães da Silva, juremeira não menos renomada, com quem teve quatro filhos: Maria Benedita, Iratagui, Dorinha e Maria Beatriz. Alegre, festivo e respeitado, Flósculo, de fato, fez do Acais a continuação do legado deixado pela mãe. Foi o primeiro a possuir um gerador próprio de energia elétrica na localidade, em noites festivas, o Acais se iluminava, podendo ser visto de longe, demonstrando a grande potencialidade e ascensão da fazenda do Acais sob sua administração altamente competente como grande agricultor e líder comunitário.

Aos viventes do lugar e arredores, o São João era a Festa dos Senhores Mestres (entidades do panteão da Jurema). Segundo os antigos era o momento para os casamentos coletivos, lapinhas, bandas de música, velas acesas para iluminar os pés de jurema e muita fartura, tudo coordenado por Flósculo sob a força da ciência mestra de seus antepassados, inclusive o mesmo era responsável pela chama e pelo acender da grandiosa fogueira em louvor à São João. Tradicionalmente no Nordeste, o ato de acender as fogueiras no período junino era unicamente realizado pelos chefes familiares.

Em 1958, solicitou ao prefeito de João Pessoa/PB para ser enterrado atrás da capela do Acais, tendo em vista que Alhandra ainda era distrito dessa capital. Como gozava de muito prestígio entre políticos locais pela influência que exercia na comunidade, seu pedido fora atendido. Em janeiro de 1959, Flósculo faleceu e foi enterrado por trás da capela de São João Batista, tendo sobre seu túmulo uma escultura de cimento de um tronco de Jurema.

Com a morte de Flósculo, sua esposa e filhos tiveram dificuldade de levar a fazenda a frente, gerando um declínio produtivo na propriedade. Após o falecimento de seus filhos que ali se mantiveram, tendo sido Dorinha sua última proprietária até os anos 2000, é encerrado o ciclo ascendente da Jurema de Alhandra no Acais.

Da Vila Maria Guimarães (nome escrito na frente da casa de Maria do Acais), o tão recente Acais outrora de grande prestígio, cenário mítico, hoje tornou-se um local para simples contemplação. De pé, restou somente a capela de São João Batista (em risco de desabamento devido a erosão entorno da construção) e o túmulo do mestre Flósculo, mantendo-se incólume.

O reacender da chama do São João do Acais

Após 61 anos do sepultamento do mestre (1956-2019), fomos ali orar e reacender o fogo sagrado de seu São João. No ritual de celebração à memória do Flósculo Guimarães, fizeram-se presentes eu (Alexandre L’Omi L’Odò) sacerdote responsável pela ritualística, Diviol Lira (sanfoneiro e afilhado recentemente integrado às folhas da Jurema, através do mestre Vaqueiro), Welica (que preparou todas oferendas), sua filha Heloísa (sete anos), Cida, Obé Iná, Juninho Oliveira, Ricardo Nunes, Henrique Falcão, Catarina Falcão, Maria Luiza Falcão (estes todos afilhados da Casa das Matas do Reis Malunguinho) e o fotógrafo autor de todas as belas imagens aqui publicadas Henrique Genecy.

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Humildemente fizemos a oferenda de uma coroa de flores com os dizeres “Enquanto houver a palavra Mestre, seu nome será lembrado – Mestre Flósculo Guimarães”, comidas juninas, bebidas, velas, fumaça de cachimbos, muitas orações e o som do fole consagrado de Diviol Sanfoneiro, que mesmo debaixo de muita chuva, tocou e cantou coberto por uma esteira de palha para toda ancestralidade presente. Músicas antigas da tradição do arrasta-pé nordestino foram trazidas à memória, cânticos à São João foram entoados e linhas de Jurema cantadas. Esse ato, iluminado somente pela luz dos candeeiros, no silêncio da noite de Alhandra, reviveu minimamente o São João do Acais, a festa mais importante do ciclo anual da localidade no saudoso passado.

Voltamos para casa após pararmos no Barracão das Sete Portas, antiga mercearia da Fazenda Sumaúma, que estava fechado, para lancharmos e nos prepararmos para a volta ao terreiro. Ainda com muita chuva, retornamos com o coração completamente repleto de paz e um sentimento profundo de gratidão. Sabemos que o Mestre Flósculo recebeu a oferenda com muita alegria. O recado foi dado. O calor da flama de nossos corações reacendeu a chama sagrada do São João do Acais. Sentimo-nos hoje abençoados por toda essa ciência que amamos e devotamos profundo respeito.

Sobre entendermos Flósculo como mestre, é a forma mais evidente de reverenciar um dos mais importantes personagens do Acais. Depois de sua mãe, ele foi o grande regente do local. Com ele, a localidade prosperou, a comunidade cresceu e a tradição foi mantida com total respeito aos preceitos tradicionais, até quase 1960. Não temos informação ou conhecimento sobre a manifestação de Flósculo nos terreiros, nunca ouvimos dizer que ele tenha se manifestado e trabalhado na Jurema no corpo de algum sacerdote e sacerdotisa, não eliminando a possibilidade disso ter acontecido. Contudo, muitos e muitas nos tempos atuais, buscando legitimidade no cenário religioso da Jurema, sobretudo nas redes sociais, alegam ser da “ciência do Acais”, mas não citam Flósculo como pessoa ou mestre que tenha tido alguma relação com o que chamam de tradição da Jurema do Acais obtida no passado pelos seus mais velhos.

Assim sendo, percebemos que há muito desconhecimento dos fundamentos históricos entorno do tema e um aproveitamento indevido do nome do Acais para os que desejam ser reconhecidos por algo que não fora possível ter, comprovadamente devido a falácias e a total falta de nexo cronológico que possa comprovar as alegações feitas. Sem Flósculo como orientador ou referência, não haveria como dizer que há uma ciência vigente do Acais nos terreiros de Natal, Paraíba, Pernambuco e Alagoas nos tempos atuais. Ele fora o guardião e mantenedor do saber de sua família. Após ele, sua esposa Damiana, que veio morar no Recife, assim como todas e todos que lá residiam antes e depois de Flósculo. Recife como capital em grande desenvolvimento, fora e ainda é, o local que as pessoas de municípios menores buscam atrás de trabalho e vida melhor, não foi diferente com o clã do Acais, que até mesmo antes de Maria do Acais, já residiam em parte na capital pernambucana e lá seguem suas vidas até hoje.

Por fim, até 2010, ano da publicação do livro já citado do Prof. Dr. Sandro Guimarães de Salles, não tínhamos registros na tradição oral dos terreiros (pelo menos de Recife e Região Metropolitana) da presença do nome Flósculo, muito menos de que no Acais haveria tido sucessão pós morte de Maria do Acais segunda, sendo muito estranho a invisibilidade deste Mestre no cenário religioso da Jurema, seja como Mestre que incorpora nos discípulos, ou como personagem histórico que permeasse os contos, histórias, toadas e memórias dos juremeiros e juremeiras.

Essa incógnita coloca muita coisa e xeque, cabendo nos esforçar no debruçamento de pesquisas que possam sanar essa lacuna histórica da Jurema contemporânea.

A beleza das fotos do reacender da chama do São João do Acais

Para Henrique Genecy, autor do belíssimo registro fotográfico da celebração ocorrida entorno do Mestre Flósculo, nem por um minuto passou pelos seus pensamentos de que a chuva e o escuro quase absoluto do local fossem atrapalhar o registro das imagens, pelo contrário, entendeu o desafio como um convite à sua superação pessoal como fotógrafo e jornalista. Ele nos revela:

“Os candeeiros iam se ascendendo e aquela luz bruxuleante parecia não se importar com a garoa persistente, e naquela penumbra aos poucos rostos trêmulos iam se revelando como vagalumes em meio a mata e meus instintos diziam que estava na hora de começar a fotografar. Busquei sentir o terreno em que estava pisando e perceber todas as pessoas e coisas que estavam no espaço ao meu redor, deixando-me afetar por aquelas sensações fui invadido por uma onda de sentimentos. A fumaça era lançada do cachimbo do juremeiro enquanto os maracás balançavam marcando o ritmo dos cantos, o que me fez compreender o quanto é marcante a presença da herança indígena durante o rito”.

O registro, composto por mais de 100 fotografias, está aqui parcialmente divulgado para ajudar ao leitor(a) a sentir como esse momento histórico foi. As imagens artisticamente feitas, compõe o acervo do QCM – Quilombo Cultural Malunguinho, estando disponíveis para pesquisadores(as) na sede.


Referências

L’ODÒ, Alexandre L’Omi. Juremologia: uma busca etnográfica para sistematização de princípios da cosmovisão da Jurema Sagrada. 2017. 276 f. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Pernambuco. Pró-reitoria Acadêmica. Coordenação Geral de Pós-graduação. Mestrado em Ciências da Religião, 2017.
MEDEIROS, Ricardo Pinto de. Participação, conflito e negociação: principais e capitães-mores índios na implantação da política pombalina em Pernambuco e capitanias anexas. XXIV Simpósio Nacional de História, São Leopoldo: 2007.
______. O Descobrimento dos Outros: povos indígenas do sertão nordestino no período colonial. Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, Recife: 2000.
SALLES, Sandro Guimarães de. À sombra da Jurema encantada: mestres juremeiros na umbanda de Alhandra. Recife, Ed. Universitária da UFPE, 2010.


Internet

Vídeo do 1º Encontro de Juremeiros de Alhandra – youtube.com/watch?v=lbu3zH5DfBs&t=157s – Acesso em 26 de Junho de 2019 às 03h32.
Documentário A ciência dos Encantados (2007) – youtube.com/watch?v=6qGode84uKU&t=409s – Acesso em 26 de Junho de 2019 às 03h55.