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Jesus como fonte de legitimação sócio-política: a relação entre o Porta dos Fundos/Netflix e o conservadorismo político-religioso

Jesus como fonte de legitimação sócio-política: a relação entre o Porta dos Fundos/Netflix e o conservadorismo político-religioso

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especial de natal do Porta dos Fundos revoltou grupos religiosos, principalmente evangélicos. O vídeo deste ano tem cerca de 46 minutos e estreou na Netflix na primeira quinzena de dezembro/2019. Chama-se A Primeira Tentação de Cristo. O enredo se passa no aniversário de 30 anos de Jesus e satiriza seu retorno após 40 dias de jejum no deserto. No vídeo, Jesus, interpretado por Gregório Duvivier, leva para casa um amigo excêntrico, interpretado por Fábio Porchat, com quem teria vivido experiências homoafetivas, trazendo incômodo a José e Maria, seus pais. A sátira já traz na sinopse que é “um especial de Natal tão errado que só podia ser do Porta dos Fundos”. Mas o aviso não foi suficiente para apaziguar conservadores, que deram partida às críticas quase imediatamente após sua estreia.

As principais manifestações partiram da Coalizão pelo Evangelho, grupo que reúne representantes de dezenas de igrejas pelo Brasil; do deputado federal Marco Feliciano, um dos expoentes da bancada evangélica e do ator Carlos Vereza, conhecido por suas posições de direita. A Coalizão pelo Evangelho publicou pelo menos dois artigos em seu site criticando a obra. Em um deles, o pastor da Igreja Presbiteriana do Bairro Imperial no Rio de Janeiro, Joel Theodoro, diz por que cancelou sua assinatura da plataforma após a publicação do vídeo:

“Manter-me na qualidade de um patrocinador de produções cinematográficas que zombam e vilipendiam o Senhor é o mesmo que esbofeteá-lo, cuspir nele, bater em sua cabeça para lhe enterrar os espinhos da coroa, zombar com deboches, forçá-lo a andar nu pelas ruas carregando o grande peso do madeiro, furá-lo ao lado com uma lança, gritar para que ele desça da cruz se for capaz”1Disponível em: <veja.abril.com.br/religiao/>. Acesso em: 14 de dez. de 2019..

No dia 15 de dezembro, o programa Domingo Espetacular, da Record TV, cujo dono da emissora é o bispo Edir Macedo, investiu cerca de 13 minutos para discutir o Especial de Natal do Porta dos Fundos trazendo entrevistas com líderes católicos e evangélicos, teólogos e filósofos da ala conservadora do cristianismo.

Sobre os casos mencionados acima, lançamos mão da sociologia boudieusiana, fazendo-nos refletir que quando se opta pela iconografia cristã para certa mobilização público-midiática, instaura-se uma disputa com atores que são engajados na mensagem religiosa. Na percepção de Pierre Bourdieu, “ainda que este ato primordial se estabeleça por um caráter disruptivo e manifesto, toda prática dominada, ou seja, toda enunciação fora do sistema de regras estabelecido está fadada a aparecer como profanadora2MACHADO, Alisson; DIAS, Marlon Santa Maria. “Então eu vim flagelada”: a imagem profana na circulação midiática. Verso e Reverso, 32(80):154-166, maio-agosto, Unisinos, 2018..

Nosso incômodo não é só pela atitude de quem se vê como detentor do sagrado, mas é justamente com a ausência de posicionamento dos religiosos contra os problemas que realmente assolam a sociedade e ainda pelo ódio destilado em nome de Deus. Após a estreia, houve um movimento de milhares de pessoas incomodadas para o cancelamento da assinatura da Netflix. Em caso comparado, cerca de 1,6 milhão de assinaturas que pedem a remoção do especial de natal do catálogo da Netflix. Enquanto isso, cerca de 80 mil assinaturas que pedem o não aumento de 2 bilhões de reais no Fundo eleitoral (o relator Cacá Leão propôs dobrar o fundo eleitoral e chegar a 3,7 bilhões de reais). Os números esclarecem muita coisa.

É mais fácil proteger o “nosso” sagrado, incorruptível, inacessível, do que se posicionar contra aquilo que no dia-a-dia ultraja a dignidade humana.

Ao que parece, sátiras como a do Porta dos Fundos, sugerem que falta ao cristianismo um diálogo mais aberto a temas que demandam muito mais que a pecha condenatória. Contudo, a gravidade maior é justamente o silêncio dos que se dizem “bons” diante das injustiças sociais que assolam a sociedade diariamente.

No dia 12/12/2019 foram divulgados os dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), que mostram a grande desigualdade presente em nossa sociedade. A renda média da camada mais pobre da população foi de R$ 943,00 mensais de agosto a outubro de 2019. Já a média da camada mais abastada no mesmo período foi de 30,5 vezes o valor, ou seja, R$ 28.763,00 mensais. Um abismo separa ricos e pobres e isso não incomoda? É como se existissem dois mundos distintos. Ainda que faça sentido, a realidade é ainda pior, porque esses mundos convivem diariamente e já não bastasse o contraste a quem se acostumou com tudo isso e prefere deixar tudo como está. Até mesmo quem, para desencargo de consciência, diga que esses dados não refletem a realidade ou mesmo se justifique religiosamente com um “Deus” que predestinou os que seriam prósperos (salvos) e os marginalizados (condenados). A justificativa também entra no plano social, quando dizem que o mérito é o que explica esse disparate. Todavia, o que se vê é menos indignação com o sofrimento do “outro” e mais devaneios tolos com aquilo que diz respeito à “minha” verdade. A verdade dos fortes precisa ser preservada a qualquer custo, pois é o instrumento de dominação cuja intenção é normatizar a vida e minimizar o pensamento, impedindo que venha à tona o fluxo de lembranças, vontades e desejos e questionem o que está dado.

Três questões que não pretendem dar conta de todo o desdobramento deste evento, mas que precisam ser registradas nesta reflexão:

  1. O Especial de Natal não trouxe nada inovador no âmbito da crítica.

Na década de 1980, o grupo de humor Monty Python, satirizou a narrativa sobre a vida de Jesus ao lançar o filme “A vida de Brian”. Antes disso, o filme musical britânico “Jesus superstar”, gravado na década de 1970, baseado na peça de teatro de Tim Rice, também reconta a mesma narrativa através de hippies no deserto. Mais recentemente, desde o final da década de 1990, a série de animação South Park, com 23 temporadas. O próprio grupo Porta dos Fundos, desde sua fundação, em agosto de 2012, já lançou na plataforma do youtube vários vídeos com o assunto onde se discute religião(ões) dentre outros elementos sagrados. Além destes, em 2017, a atriz transexual Renata Carvalho interpretou Jesus na peça “O Evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”, onde o monólogo apresentava este personagem também como transexual. Embora o texto não fosse brasileiro, a ideia era discutir as histórias de exclusão no Brasil, onde, só em 2016, 343 pessoas da comunidade LGBT foram assassinadas, segundo o relatório do GGB (Grupo Gay da Bahia). Em linhas gerais, não há nada de novo.

  1. A segunda questão abraça uma hipótese que decorre também de declarações e de outros textos que buscam discutir o tema. Ela parte de uma declaração do comediante Porchat:

“Gente, pode deixar que eu me resolvo com Deus, não precisa se preocupar não. Agora pode voltar a se indignar com a desigualdade que destrói nosso país. Mas tem que se indignar com o mesmo fervor, tá?”.

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Com isso, outros dois pontos: a) Como um grupo de comédia, o Porta dos Fundos não produziu humor neste episódio de natal. Todavia, é importante lembrar que o gênero comédia não tem apenas a finalidade de fazer rir, mas também de criar, fazendo uso de figuras de linguagens diversas, expressões capazes de superlativizar algum quadro social. A comédia grega, por exemplo, servia, dentre outras coisas, para satirizar aspectos da sociedade, tais como: figuras públicas/nobres, instituições políticas, costumes, hábitos sociais, moral religiosa. No caso do Porta dos Fundos, o uso da religião na esfera pública. O episódio de natal que fez o uso da narrativa sobre Jesus é só mais um no ambiente da produção cinematográfica capitalista. b) Como um grupo de comédia já premiado pelo último especial de natal (2018), o Porta dos Fundos poderia ter levado em consideração que a determinação de uma outra identidade sobre a figura de Jesus, a fim de criticar fundamentalismos religiosos e apontar para possíveis inclusões a partir desse personagem, poderia ter aproveitado caminhos criativos diferentes para que os mesmos grupos fossem criticados e acolhidos. E por que isso? Porque não se pode afirmar que Jesus, nas narrativas evangélicas, foi um homossexual, mas que, certamente, acolheria quaisquer que fossem alvo de apedrejamento numa sociedade altamente religiosa. Desta maneira o roteiro continuaria se ocupando em discutir de maneira crítica e, ao mesmo tempo, não determinando a identidade do personagem Jesus. Que… é apenas mais uma faceta narrativa acerca do Jesus não histórico, mas artístico-político-teológico.

  1. Nossa última questão: o levante conservador não é exclusivamente nacional, mas revela a onda que ocorre em várias partes do mundo (como registrou Joanildo Burity [2019]):

“[…] a onda conservadora não se contém nas fronteiras nacionais, nem se origina de seu interior. A geografia e a cronologia dessa onda não são singularmente brasileiras nem definidas de modo estável e linear. Não têm ordem, nem progridem linearmente. Uma maré montante de reação conservadora crescentemente globalizada se ergueu no mesmo período, grosso modo, quero insistir, que a reação brasileira identifica como a temporalidade do desastre de que pretende nos redimir, só que mais ampla e independentemente da dinâmica brasileira: desde o início do novo século. Seus sinais apontam precisamente para uma resposta e uma recusa a processos iniciados anteriormente à conjuntura pós-2014. Donde se tratar de uma reação conservadora”.

O Brasil é um país conservador, mas há acentos políticos e religiosos que surgem como em eventos como este protagonizado pelo grupo Porta dos Fundos. Isso tem ocorrido categoricamente nos últimos anos. Disputas narrativas sobre Jesus a fim de legitimar ações político-sociais. Em outras palavras, o Jesus que vencer dá as cartas. E o Jesus vencedor, determinaria as relações sociais. Isso não é algo simples, por está em jogo grupos que podem ser excluídos ou incluídos de políticas públicas e, além disso, alvo de preconceito e outros crimes. O que está em jogo é uma teologia da vida ou da morte. E muitos grupos, inclusive os de comédia, fazem uso da figura de Jesus, acessível no imaginário popular brasileiro, nesta disputa.

Uma coisa é certa: a identidade de Jesus é inflacionada para todos os lados.

Tal comportamento não cessará enquanto a “vontade de verdade” e de aniquilação for maior que a vontade de amar e se importar com o outro/diferente. Talvez não haja melhor maneira de se respeitar a memória de Jesus do que pela prática sacrificial do amor. E vale lembrar, os “falsos profetas” não são aqueles que tornam explícito seus posicionamentos, mas aqueles que falam em nome de Jesus, que expulsam demônios, que profetizam e fazem milagres em seu nome, porém, sem nunca tê-lo conhecido (Mateus 7,22).


Notas

  • 1
    Disponível em: <veja.abril.com.br/religiao/>. Acesso em: 14 de dez. de 2019.
  • 2
    MACHADO, Alisson; DIAS, Marlon Santa Maria. “Então eu vim flagelada”: a imagem profana na circulação midiática. Verso e Reverso, 32(80):154-166, maio-agosto, Unisinos, 2018.