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Chega de Estultice – estudo etimológico das palavras Umbanda e Kimbanda | Parte 2

Chega de Estultice – estudo etimológico das palavras Umbanda e Kimbanda | Parte 2

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Foto: Rod Waddington

JAMES e BROADHEAD na obra Historical dictionary of Angola dão o seguinte significado à palavra Kimbanda: “Adivinho que herdou ou adquiriu as habilidades necessárias para se comunicar com o mundo espiritual”. [1] Acrescentam que “o Kimbanda pode manter contato com os espíritos dos antepassados para saber se eles foram ofendidos por alguém e, em caso afirmativo, como resolver a questão” [2].

O escritor, músico e compositor Nei Lopes, em seu famoso Novo Dicionário banto do Brasil, dá para o vocábulo Quimbanda um dos seguintes significados:

Sacerdote de cultos de origem banta. Do quimbundo kimbanda, sacerdote e médico ritual correspondente ao quicongo nganga. O termo se distingue de outro como o quimbundo muloji e o quicongo ndoki, que designam o feiticeiro, agente de práticas que objetivam malefícios. [3]

Assim, o Kimbanda é um médico, que utiliza a Umbanda, ciência(s) médica(s). No Candomblé de tradição banto, ou conhecido como Candomblé Angola, Kimbanda é o nome do Rito praticado, sendo o Sacerdote chamado de Táta Kimbanda (Pai de Quimbanda), assim como é chamado, também, no culto de Kimbanda, o Sacerdote.

Para RIBAS o Kimbanda desempenha as funções de adivinho e de médico, ambas necessárias para a cura de doenças. Cita outros agentes religiosos angolanos tais como muloji (feiticeiro), o kilamba (ministro do culto de espíritos ctónicos designados por yanda [4]), ou múkua-mbamba (homem-do-chicote que persegue os feiticeiros). Para o autor “os dois primeiros agentes, o kimbanda e o mulôji, distinguem-se na sua prática e ciência, respectivamente umbanda, como arte de curar e uanga, como feitiço, malefício” [5].

Continua RIBAS:

O adivinho que promove a ligação entre vivos e mortos pode acumular o papel do Kimbanda, o que detém poderes para curar doenças do corpo ou da alma, mediante rituais de invocação dos espíritos dos antepassados, oferendas e “limpeza” dos elementos atingidos pelo malefício. [6]

TENGUNA diz que:

Os sacerdotes encarregados de chamar os espíritos do passado, do funeral do rei e da investidura de um novo rei, dos rituais de iniciação na idade adulta das moças e rapazes eram chamados de kimbandas, pessoas de ambos os sexos, especialmente preparados para exercer essas funções e era entre eles que se encontravam os ‘artistas’: os contadores de histórias, os músicos, os dançarinos e os artistas plásticos, os escultores e os pintores de estatuetas e das máscaras. Chamavam os espíritos benéficos e tinham, evidentemente, competência de curar doenças e resolver conflitos sociais. Faziam-no frequentemente por adivinhação, ou seja, consultando os espíritos. […] Também havia espíritos do mal. Estes não eram chamados pelo Kimbanda e sim pelo Muloji (o feiticeiro ou bruxo) e eram pagos para causar desgraças a alguém. [7]

O etnólogo Arthur Ramos em seu livro “O Negro brasileiro” nos informa:

O grão-sacerdote chama-se quimbanda (ki-mbanda), ao mesmo tempo médico, adivinho e feiticeiro. Em Angola, fazem os negros a distinção entre o “Kimbanda Kia Dihamba”, o verdadeiro chamador ou invocados dos espíritos e o “Kimbanda Kia Kusaka” ou feiticeiro que cura doenças. Costumam, ainda, em algumas regiões de Angola, fazer a distinção entre o “Nganga” ou “Ganga” (derivado do “nganga”, senhor) que seria o cirurgião principal, o verdadeiro sacerdote e o Quimbanda o curandeiro. No Brasil o mesmo Embanda (Imbanda) cumpre as duas funções. [8]

Em Angola a palavra Imbanda[9] (Embanda) é o plural de Kimbanda. Já ‘Mbanda (Umbanda) é a arte de curar desenvolvida e praticada pelos Imbanda” [10] banto, de Angola, passada por tradição oral de geração em geração com bastante zelo. Esta arte ainda é praticada em toda Angola como parte do sistema religioso tradicional. Muitas gerações angolanas foram salvas de pestes, epidemias, doenças incuráveis, doenças espirituais e emocionais, por meio desta arte milenar de curar. Desde tempos mais remotos Angola foi sempre terra de muitas artes curativas, praticadas pelos Imbanda, também conhecidos como Otyimbanda (curandeiros).

O poeta português Tomaz Vieira da Cruz, que viveu muitos anos em Angola, nos brinda com um belo poema, chamado “Buzi”. Em uma das estrofes desse poema lemos:

Buzi, ó flor do Songo [cidade angolana],
para males da muxima [coração],
Kimbanda não tem milongo! [cura]. [11]

O Vocabulário Kimbundo-Português de Alberto Oliveira Pinto nos traz a palavra Kimbanda com o seguinte significado: “Kimbanda (plur. Imbanda) – Especialista de magia Mbundu e Imbangala, havendo vários tipos, consoante o espírito que tratavam e os meios que utilizavam (t. kimbundu).” [12]

O Kimbanda também lança mão de métodos de adivinhação e vatícinio, sendo os mais conhecidos o transe, o muxacato, jimbamba (búzios), ngombo ya cisuka (tipo de adivinhação), o trabalho com os Inkice (divindades semelhantes aos Orixás), etc. Por meio desses vários métodos o kimbanda desvenda as origens das doenças, indica às pessoas as causas ambientais, espirituais ou mágicas das doenças e as aconselha com receitas da mesma ordem, não deixando, nunca, de recorrer à farmácia da natureza. Faz, também, o diagnóstico tradicional e já utilizava, no passado, antes da colonização, p.ex., o cordão umbilical para tratar doenças da infância. A zooterapia foi também muito usada, para tratar doenças mentais. A massagem tradicional angolana foi e ainda é muito usada pelos Imbanda.

O Jornal de Angola, edição de 24/09/2010 traz uma reportagem sobre o Kimbanda (Sacerdote) Xanene, personagem importante da região de Lobito, uma cidade do Estado de Benguela, Angola:

Xanene é um kimbanda bastante conhecido na cidade do Lobito pelo tratamento que faz com raízes, pós, fumaças e banhos. A sua acção curativa tem maior incidência nas pessoas com problemas psíquicos. São vários os pacientes que depois de passarem por hospitais, clínicas, centros de medicina natural e ervanárias, o procuram. A maior parte dos doentes que passa pelas suas mãos regista melhorias, por isso vai tratar doentes a todas as regiões do país, inclusive a Luanda. Fruto do seu trabalho, é um dos poucos kimbandas reconhecido pelas autoridades provinciais, podendo tratar os pacientes em sua casa, no bairro do Alto Esperança, na cidade do Lobito, onde tem quartos para internamentos. [13]

Na província do Bengo estão situados os dois principais centros de devoções de Angola, onde o sincretismo entre as tradições angolanas e católicas, andam de mãos dadas: Igreja da Santa Ana, em Caxito na capital do Bengo e Senhora da Muxima, no município de Muxima, província do Bengo. Desde o século XVI, nas Igrejas da Santa Ana e da Senhora da Muxima, durante os 365 dias do ano, ora-se com a fé que move montanhas. Pela intercessão dessas duas poderosas “intercessoras divinas”, milagres sem conta, aconteceram no passado e continuam a acontecer na vida dos angolanos. Lamentável a falta de divulgação desses milagres. Os rios Bengo, kwanza, Ndanji, lagoa da Ibendua e outros cursos de água, fazem parte do grande misticismo do Bengo, pela crença popular na kianda (singular de yanda) a divindade feminina da mitologia Banto, que vive nas aguas do planeta. Rituais da Sagrada Tradição angolana, são realizados, desde os tempos mais remotos, nos rios e lagoa aqui mencionados. Artes curativas tradicionais são mais uma evidência do misticismo do Bengo. Umbanda é uma das artes de curar desenvolvida e praticada pelos povos banto, e continuada pelos seus descendentes, os angolanos. A Umbanda é praticada em toda Angola e na diáspora banto, como parte dos sistemas religiosos dos povos banto e angolano.

Ignorantes, que desconhecem tudo aquilo que escrevemos anteriormente, falam as piores sandices que se podem imaginar, citando, por exemplo, a chamada “kimbanda malei”, sendo esta oriunda da “má lei” para alguns idiotas ou do termo malê (do yorùbá Ìmàlè), que designa o seguidor da religião islâmica, dizendo que a Kimbanda seria a reunião das práticas dos feiticeiros muçulmanos.

Um “autor” de historinhas “para boi dormir”, escreveu o seguinte absurdo:

“Malei é uma palavra que realmente deriva do povo Malê – portanto encontramos uma forte presença de magia árabe/sufi e Marabô realmente é o chefe dessa linha, por causa de sua conexão com os feiticeiros muçulmanos do norte da África Ocidental, chamados de Marabos [Marabouts]”.

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É difícil de entendermos como alguém pode se dizer kimbandeiro e escrever essa idiotice, que não possui nenhuma base. Vamos esclarecer, então:

– Malei vem do Orixá Mallet que Zélio Fernandino de Moraes, o precursor da Umbanda, incorporava. Zélio dizia que o Orixá Mallet era um “tipo de Ogum” e que o protegia;

– Malê não era um povo, mas era como os yorùbá (grupo etnolinguístico que está distribuído em vários países da África Ocidental) não muçulmanos chamavam os negros muçulmanos, conforme citei anteriormente. A palavra yorùbá que dá origem ao termo é Ìmàlè;

– O Exu Marabô, ao qual o “autor” se refere, cujo nome não tem nenhuma ligação com o termo Marabout, pois este é o professor de Alcorão, conselheiro político e religioso; alguns Marabout praticam a medicina tradicional africana, sendo que na linguagem berbere é sinônimo de santo, enquanto que o nome Marabô, dado ao Exu (Orixá), vem da seguinte cantiga, feita em língua Yorùbá (portanto não tem nada a ver com a língua Kimbundu):

A jí kí Barabo ẹ mo jùbá, àwa kò ṣé
A jí ki Barabo e mo jùbá,
e ọmọdé kọ èkọ́ kí Barabo ẹ mo juba
Ẹlẹ́gbára Èṣù l’ọ̀nà

Tradução:
Acordamos e cumprimentamos (saudamos) Barabo,
que vós não nos façais mal
Acordamos e cumprimentamos (saudamos) Barabo,
A criança aprende na escola que deve saudar Barabo,
Senhor da Força, Èṣù dos caminhos.

Portanto, vê-se, claramente que Barabo é um Oriki, uma louvação, a Èṣù, que pelo uso lingüístico acabou se tornando Marabô.


[1] JAMES, W. Martin & BROADHEAD, Susan Herlin. Historical dictionary of Angola. Oxford: Scarecrow Press, p. 79, 2004.
[2] Idem.
[3] LOPES, Nei. Novo Dicionário Banto do Brasil. Rio de Janeiro: Pallas, 2003.
[4] Divindades do mar.
[5] RIBAS. Op. Cit, p. 28.
[6] Id., p. 24 e 52.
[7] TENGUNA, Ribeiro. Quanto vale a vida do Africano: uma narrativa fiel de como a ganância dos países ricos, a ineficiência da ONU e a corrupção de governos do continente afro destruíram a África e os africanos. São Paulo: Biblioteca 24×7, 2008, p. 156.
[8] RAMOS, Arthur. O negro brasileiro. Rio de Janeiro: Companhia Editora Nacional, 1951, p. 101.
[9] Para um melhor entendimento da palavra Imbanda veja o site “Ritos de Angola”, disponível em: http://www.ritosdeangola.com.br/page.php?132 , um excelente site de informações sobre os bantus e sua religiosidade.
[10] LIBBY, Douglas Cole & FURTADO, Júnia Ferreira (org.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, p. 297, 2006.
[11] CRUZ, Tomás Vieira da. Buzi. Lisboa: Secretaria Geral do Ministério do Ultramar e da Junta de Investigações do Ultramar, Estudos Ultramarinos: literatura e Arte, nº 3, 1959, p. 244.
[12] Disponível em:  http://www.multiculturas.com/angolanos/alberto_pinto_kimb_port_vocab.htm, Acesso em 10/02/2010.
[13] SILVA, Jesus. Medicina natural só em último caso. Luanda: Jornal de Angola, 24/09/2010.