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A pandemia e a crise de legitimidade religiosa

A pandemia e a crise de legitimidade religiosa

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A crise sanitária provocada pela pandemia do COVID-19 não apenas expos ainda mais as patologias sociais e política do país, como também, deflagrou uma crise de legitimidade religiosa – especialmente em determinados setores das igrejas evangélicas e católicas. Em reação ao prolongamento inicial das medidas de suspensão temporária dos cultos religiosos presenciais imposta pelos Governos Estaduais – como tentativa de evitar aglomerações (como em estádios, shoppings centers, etc.) – o que se assiste é o estabelecimento de uma tensão centrada na mobilização de certas elites dirigentes, parlamentares ligados à estas igrejas e religiosos-midiáticos reivindicado a reabertura dos templos em meio a proliferação do vírus. Essa postura tem gerado críticas de vários segmentos da sociedade que apontam para a discrepância entre a ações destes grupos e as orientações políticas (Estado) e científicas (órgãos de saúde).

Nossa questão neste texto é: quais ressonâncias sociais este cenário pode ocasionar? A resposta que gostaríamos de oferecer a essa pergunta pode ser dividida em três partes:

Hipótese:

  1. a assimetria dos discursos religiosos com relação aos discursos científicos e políticos na sociedade em determinados momentos críticos sobre questões públicas, provoca um enfraquecimento da legitimação das visões religiosas de mundo para os cidadãos, na medida em que deixa de fornecer uma perspectiva plausível da realidade;
  2. Esse, por sua vez, pode levar a um processo de “secularização da consciência” de estratos da população;
  3.  Favorecer o fenômeno da desfiliação religiosa. Ou seja, a atual postura destes setores pode ter um efeito reverso: na medida em que buscam insistentemente reabrir os templos diante da pandemia, podem estar “fechando as portas” da fé religiosa a certas pessoas.

Explanemos melhor.

Tal movimento que reivindica a reabertura dos templos, principalmente encabeçado por certos atores evangélicos e católicos (que, naturalmente não representam a totalidade dos seus grupos religiosos) utiliza-se de uma retórica jurídica-legal (apontando uma suposta inconstitucionalidade do fechamento das igrejas) que se coloca de modo paracientífico (agindo a despeito das orientações científicas dos órgãos sanitários), com pretensões de natureza moral (indicando o aspecto “essencial” das congregações como espaços que alimentam esperança nestes tempos). Além destes argumentos, e como pano de fundo geral, encontra-se o fator econômico: as baixas na arrecadação financeiras dos dízimos e ofertas dificulta radicalmente a manutenção das burocracias religiosas. Dessa forma, a reativação dos cultos presenciais se coloca não apenas como importante para a dinâmica convencional da vida religiosa destas religiões, mas também como fator de “sobrevivência” institucional. Por esta razão, estes atores exploram articulações políticas e mobilizações midiáticas para viabilizar esse fim.

Sem querer apontar a validade ou não dos argumentos citados acima, o que se percebe, como já dito, é que estes se colocam em contraposição aos argumentos científicos e políticos por parte dos Órgãos de Saúde e do Poder Público que recomendam o isolamento social e permanência da suspensão temporária templos enquanto não houver um maior controle da situação pandêmica. Diante disto, o discurso religioso, que entra em “rota de colisão” com o discurso político e científico, gera um mal-estar na sociedade, estabelecendo assim uma crise de legitimidade religiosa.

No que consiste essa crise? Parafraseando o filósofo alemão Jürgen Habermas[1], quando há uma dissonância cognitiva entre o espaço público e a religião, na qual esta não consegue encontrar um enfoque epistêmico aberto com as visões de mundo seculares, capaz de gerar um equilíbrio ético-teológico, gera-se assim uma crise baseada no conflito. Em um cenário no qual o Estado é regido pelos pressupostos da racionalidade secular (ou não-metafisica), esse conflito provocado pela religião implica num enfraquecimento da legitimidade do seu discurso diante da sociedade.

A circunstância deste enfraquecimento da legitimidade dos discursos de setores destas igrejas diante do problema público de calamidade gerada pelo vírus, pode favorecer aquilo que o sociólogo norte-americano Peter Berger[2] chamou de “secularização da consciência”. Segundo o autor a “secularização da consciência” se dá quando os indivíduos de uma sociedade vão subjetivamente recorrendo cada vez menos às interpretações religiosas para lidar com o mundo e as próprias vidas. Tais cidadãos passam a compreender que a religião já não fornece mais um discurso plausível da realidade, e por isso, secularizam suas referências de percepção e orientação individual da existência.

E o que esse enfraquecimento de legitimidade da religião e a secularização das consciências provoca? Duas pesquisas realizadas por sociólogos no contexto norte-americano, publicadas pela Pew Research Center, podem ajudar a entender algumas possibilidades. De acordo Michael Lipka[3], estudando os fatores que levam crentes religiosos a deixarem de se identificar com uma igreja, chegou-se ao dado de que para 20% dos pesquisados há uma desafeição com o modo pelo à qual as igrejas passaram a se organizar socialmente. Já no trabalho de Becka Alper[4], ao buscar compreender as razões que conduzem ateus e agnósticos a não se vincularem a um grupo religioso, identificou que para 49% dos entrevistados (ao serem ouvidos sobre seis perguntas, separadamente), a resposta dada foi a não concordância com as “posições tomadas pelas igrejas sobre questões sociais/políticas”.

O que estes dados tem em comum? Eles nos informam que o discurso e posicionamento assimétrico das igrejas com relação às questões sociais/políticas provoca um fenômeno de desfiliação e anti-filiação religiosa.

Queremos, ao propósito geral do texto, rearticular as ideias agora expostas: a assimetria dos discursos de determinados grupos evangélicos e católicos de reabertura dos templos, em contraposição às orientações políticas e científicas de suspensão dos cultos presenciais  de diante da pandemia do COVID-19, provoca um conflito capaz de gerar um enfraquecimento da legitimidade religiosa. Esse favorece uma secularização da consciência, quando da perda de plausibilidade religiosa de explicar e conduzir as condutas em sociedade. Por fim, essa postura religiosa assimétrica, pode favorecer as condições do acentuamento do fenômeno da defiliação e anti-filiação religiosa.

Essa crise pode estar favorecendo e/ou intensificando uma nova transição religiosa no Brasil: não apenas acentuar um movimento de evasão de religiosos por causa da discordância com o posicionamento destas igrejas, mas também, gerando um sentimento de contraposição a fé religiosa. Essa transição pode ser marcada pelo aumento significativo dos “sem-religião” na população brasileira. O retorno as atividades regulares das igrejas e os próximo censos estatísticos irão apontar se essa hipótese se confirmará ou não.

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Seria possível que, estas igrejas, no esforço de reabertura dos templos, no intuito de solucionar a crise desencadeada por esta situação de pandemia, e ao colocarem-se em oposição às orientações políticas e sanitárias, não estariam gerando uma crise religiosa ainda maior?


Notas

[1] HABERMAS, Jürgen. Entre naturalismo e religião: Estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.

[2] BERGER, Peter. O Dossel Sagrado: Elementos para uma Teoria Sociológica da Religião. São Paulo: Paulus, 1985.

[3] LIPKA, Michael. “Why America’s ‘nones’ left religion behind”. 24/08/2016. Disponível em: < https://www.pewresearch.org/fact-tank/2016/08/24/why-americas-nones-left-religion-behind/>

[4] ALPER, Becka. “Why America’s ‘nones’ don’t identify with a religion”. 08/08/18. Disponível em: < https://www.pewresearch.org/fact-tank/2018/08/08/why-americas-nones-dont-identify-with-a-religion/>