Now Reading
Reflexões para que este ano seja realmente novo

Reflexões para que este ano seja realmente novo

blank

Refletir sobre o Ano-Novo é também refletir sobre o tempo. O tempo que passa. O fim de um ciclo. O que muda, o que levamos adiante e o que deixamos para trás. Trata-se de uma forma de ritualizar a passagem do tempo. No entanto, cabe-nos questionar: é o tempo que passa ou somos nós que passamos por ele?

Os últimos dois anos nos colocaram diante dessa questão de forma nua e crua. Foram anos em que o tempo nos pareceu em suspenso. Dois anos que, de tão intensos, nos deram a sensação de termos sido sugados para uma espécie de buraco-negro fora do espaço-tempo. Um lugar onde o tempo é vertical e não horizontal, o lugar da tempiternidade ou do tempo kairológico, como diria o filósofo e teólogo catalão Raimon Panikkar (1918-2010). Mas, não seria esse o tempo real? O único existente? Enquanto o tempo horizontal é apenas ilusório? Uma invenção humana para contabilizar os ciclos da natureza?

Um novo ano é como o nascer de um novo dia. Com o canto dos pássaros, anunciando um mundo inteiro de novas possibilidades e descobertas. É um momento em que a humanidade (ou, pelo menos, a cultura ocidental judaico-cristã), quase que em uníssono, coloca suas intenções que, na maioria das vezes, estão associadas à saúde, à prosperidade e à paz. Cada uma de nós, ainda que que por um segundo, tem fé de que dias melhores virão, apesar de tudo o que temos vivido. Cada uma de nós se coloca a serviço de um novo propósito, estilo de vida ou causa (seja ela pessoal ou social). Trata-se de uma abertura ao novo. No entanto, 2022 já começou nos mostrando que pouca coisa mudou e que, se não nos cuidarmos, teremos mais uma repetição sobre o mesmo tema. E nós retornaremos a um tema que propomos no início da pandemia, em 2020, nesta coluna.

De uma certa maneira, se há algo a aprender com esta pandemia e com esses últimos dois anos, para que não se tornem 10, 100, 1000, é que esta abertura e este renovar-se deve acontecer diariamente a cada nascer e a cada pôr-do-sol, a cada fase da lua, a cada estação, a cada ciclo que a Terra diariamente nos propõe. Pois, o nosso compromisso principal deve ser com ela, a mãe-Terra, que nos sustenta, que nos religa, que nos conecta com o nosso poder destruidor e criador, mas também com a nossa impotência diante da sua tremenda sabedoria.

Na natureza, sagrado e profano coabitam sem contradição, numa dança cósmica, que existe desde sempre, antes dos calendários serem inventados e que continuará existindo quando a nossa espécie não mais aqui estiver. Fazer parte desta dança talvez seja o grande mistério da vida e, tudo nos leva a crer, que o único caminho para a nossa salvação. Mas, de que forma essa salvação aconteceria?

Para Panikkar, a salvação ou realização, trata-se de se chegar à síntese das três dimensões da realidade, através de uma “visão cosmoteândrica”. A síntese de uma realidade que não existe em partes, mas na relação intrínseca entre o ser humano, o mundo e o Mistério transcendente. Essa seria a plenitude a ser alcançada. Essa vivência pressupõe uma fé na salvação e no caminho que escolhemos para chegar a ela. É preciso esse aprofundamento em sua própria essência, que nos liga a todos os outros seres humanos, em sua fé, mas também à natureza, ao cosmos.

Esta seria a “plenitude”, que enxerga “o divino” no ser humano, sendo este um cocriador da realidade, que está em constante movimento (“creatio continua”), não tem um início pontual no tempo e está em permanente transformação. A dimensão humana situa-se, portanto, em um espaço de mediação e de síntese entre a dimensão cósmica e a divina. O ser humano guardaria em si um caráter de construtor do próprio destino e do da humanidade, tendo como “parceira” de construção a divindade.

Nos remete à perspectiva indígena da relação do sagrado com a Mãe Terra. Na Declaração para a Conferência Mundial sobre os Povos Indígenas (Iximulew, Guatemala, abril de 2013) os povos ali representados afirmaram que: “nossas terras, territórios e recursos são elementos fundamentais que permitem a continuidade histórica e a plenitude da vida, espiritualidade, desenvolvimento social, econômico, político e humano, vinculados à nossa cosmovisão, que consiste na relação profunda com a Mãe Terra”.

É, nesta atmosfera, que articula o encontro do transcendente com o imanente, que enxerga cada ser humano como uma síntese do Todo, em uma visão que não separa e nem tudo mistura em uma unidade amorfa, que podemos pensar no ano novo. Olhar o mundo como uma sinfonia de várias vozes, aparentemente caótica, mas profundamente bela em toda a sua diversidade. Aprofundar-nos na “tempiternidade” do aqui e agora e sentirmos que a nossa essência e a própria realidade estão conectadas.

 VEJA TAMBÉM
blank

Que este seja o ano de um real despertar coletivo para essa visão, pois a natureza se regenera, sempre. Já a humanidade…


Referências

PANIKKAR, Raimon. PANIKKAR, Raimon. I. Mística y espiritualidad: espiritualidad, el camino de la Vida. Barcelona: Herder, 2015. [Obras completas].

PANIKKAR, Raimon. PANIKKAR, Raimon. VIII. Visión trinitária e cosmoteándrica: dios-hombre-cosmos. Barcelona: Herder, 2016. [Obras completas].