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Os papas, os Jogos Olímpicos e a cultura do encontro

Os papas, os Jogos Olímpicos e a cultura do encontro

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Os Jogos Olímpicos da Antiguidade, uma série de competições entre representantes de várias cidades-estados da Grécia antiga, foram realizados na pólis grega de Olímpia, do século VIII a.C. ao século V d.C, em honra a divindades como Zeus, rei dos deuses, e Pélope, o herói e rei mítico de Olímpia. Apesar da sua origem pagã, as Olimpíadas compartilham um passado – e presente – em comum curioso com outra instituição tão longeva quanto e que também sobrevive até a nossa era moderna: o papado.

No ano de 394, o imperador romano Teodósio I decidiu suspender os jogos, como forma de erradicar os últimos vestígios do paganismo civil greco-romano. Na mesma marcha, também foi dele a decisão de fazer do cristianismo niceno, a raiz do catolicismo como nós o conhecemos hoje, a religião oficial do Império, abrindo caminho para a ascensão do papa como autoridade religiosa, moral e política da Roma antiga.

Em 6 de abril de 1896 começava em Atenas, na Grécia, a primeira edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna. O renascimento do espírito olímpico, atropelado em 394 pela chegada do cristianismo ao status de força motriz da sociedade, deveu-se, principalmente, ao pedagogo e historiador francês Pierre de Frédy, o Barão de Coubertin. E em 1908, as Olimpíadas deveriam chegar à Roma, nos “degraus” do papa, pela primeira vez.

Mas diferente do que acontece hoje, naquela época, sediar os Jogos Olímpicos não garantia muitos benefícios financeiros para o país, e o Comité Olímpico Internacional (COI) enfrentava grande resistência de políticos e autoridades italianas para hospedar o evento. Para garantir o sucesso da competição, Coubertin foi pedir a “benção” do papa e a intercessão do Vaticano em favor das Olimpíadas. Em 1905, o barão francês se encontrou com o então papa Pio X, de quem recebeu o “sinal verde” da Igreja para a realização dos Jogos Olímpicos.

As Olimpíadas de 1908, que deveriam ter sido sediadas em Roma, tiveram que mudar de endereço para Londres, na Grã-Bretanha, porque uma erupção do vulcão Vesúvio obrigou as autoridades italianas a usarem todos os seus recursos para combater os efeitos da tragédia. A ocasião, porém, marcou a aliança do catolicismo com o mundo esportivo e restabeleceu a paz entre o papado e as Olimpíadas. Em 1960, os Jogos Olímpicos, enfim, desembarcaram na Cidade Eterna, a Roma dos Césares e a Roma dos papas.

Um dia antes da abertura, os atletas das 83 delegações que foram à capital italiana se reuniram na Praça São Pedro, dentro dos muros vaticanos, para um encontro com o papa João XXIII. Aos competidores, o “papa bom” pediu “um exemplo de competição saudável” e ressaltou a capacidade do evento de unir os povos: “embora pertençais a diferentes nações, estão fraternalmente associados ao mesmo hobby e ao mesmo propósito dos Jogos”.

Em 1966, Paulo VI recebeu em audiência integrantes do COI, que naquele ano realizavam, em Roma, a sua 64ª assembleia geral. Aos membros do comitê, o papa destacou os valores comuns que proporcionam o diálogo entre a Igreja e o esporte e ajudam na promoção da paz. Para o Pontífice, “a prática do esporte em nível internacional, que encontra sua expressão mais perfeita nos Jogos Olímpicos, tem se mostrado um fator marcante para o progresso da fraternidade entre os homens e para a difusão do ideal de paz entre as nações”.

Seis anos depois desse discurso, as Olimpíadas e o mundo do esperte seriam terrivelmente abalados pelo atentado terrorista em Munique, Alemanha, durante os jogos de 1972, deixando 17 pessoas mortas, incluindo seis treinadores e cinco atletas da delegação israelense. Diversos líderes mundiais, inclusive o papa, condenaram o massacre. Em um discurso histórico, dramático e emocionado, Paulo VI afirmou que a tragédia na sede dos Jogos Olímpicos “desonra verdadeiramente o nosso tempo”.

Além do interesse pelas artes e da religiosidade intensa, o esporte também esteve no centro das paixões do jovem Karol Wojtyla. Por diversas vezes, João Paulo II escapou furtivamente do Vaticano para esquiar nas montanhas geladas da região de Abruzzo, na Itália. Não por acaso, o papa polonês ofereceu uma série de reflexões sobre as virtudes esportivas, sempre de valor cultural e religioso, e também não se absteve de denunciar aquilo que, na sua percepção, poderia colocá-las em risco.

Nos anos de 1980, durante o auge da Guerra Fria, a “Cortina de Ferro” dividia o mundo em dois, e essa divisão tirou o brilho e provocou boicotes às Olimpíadas de Moscou (1980) e Los Angeles (1984). Aos participantes dos jogos de 84, João Paulo II recordou que o evento deve ser uma “expressão da competição atlética amigável e da busca pela excelência humana, mas também para o futuro da comunidade humana, que por meio do esporte expressa externamente o desejo de todos por uma cooperação universal e entendimento”.

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Vinte anos depois, às vésperas dos Jogos de Atenas de 2004, a primeira Olimpíada após os atentados terroristas de 11 de setembro, que marcaram o começo dos anos 2000, o papa Wojtyla, já com a saúde frágil e muito debilitado fisicamente, desejou que “no mundo, hoje atormentado e comovido por tantas formas de ódio e de violência, o importante evento esportivo dos Jogos constitua uma ocasião de sereno encontro e sirva para promover a busca da paz entre os povos”. Naqueles dias, o fantasma do terrorismo voltou a rondar a competição.

As intenções de João Paulo II foram repetidas, quatro anos mais tarde, por Bento XVI, que dirigiu-se aos participantes da edição de Pequim, em 2008, e expressou seus “sinceros bons votos” de que os Jogos ofereçam à comunidade internacional “um exemplo válido de convivência entre pessoas das mais diversas proveniências, no respeito pela dignidade de todos”. Na ocasião, Joseph Ratzinger classificou indelevelmente o esporte como ferramenta de “fraternidade e de paz entre os povos”.

As Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016, tiveram palco três anos depois da inesperada renúncia do papa alemão. No Trono de São Pedro, pela primeira vez, o mundo tinha um latino-americano, vindo da Argentina, jesuíta e apaixonado por futebol. Aos participantes dos Jogos do Brasil, Francisco desejou que “o espírito dos Jogos Olímpicos possa inspirar a todos, participantes e espectadores, a combater o bom combate e a terminar juntos a corrida”, diante de um mundo que “está sedento de paz, tolerância e reconciliação”.

Para o papa Bergoglio, com o esporte é possível construir a “cultura do encontro”, a realização de uma civilização onde reine a solidariedade, fundada no reconhecimento de que todos são membros de uma única família humana, independentemente das diferenças de cultura, cor da pele ou religião. Se, um dia, nos primórdios do cristianismo, a Igreja viu nos Jogos Olímpicos uma ameaça à sua doutrina e uma ode ao paganismo, ao politeísmo e à idolatria, esses tempos ficaram para trás. Hoje, os papas da era moderna são unânimes ao reconhecerem que as Olimpíadas são, na verdade, veículo de paz e de fraternidade, e torcem para que a chama dos jogos nunca mais seja apagada.