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De violetas a margaridas: caminhos da laicidade

De violetas a margaridas: caminhos da laicidade

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Recentemente, no 33º Congresso Internacional da SOTER — Sociedade de Teologia e Ciências da Religião — que teve por tema “Religião, Laicidade e Democracia: cenários e perspectivas”, a teóloga feminista Ivone Gebara, tendo em vista o cenário político e religioso brasileiro, ao falar sobre o papel das religiões na defesa da democracia e da diversidade humana, seja essa religiosa ou não, ressaltou que o discurso sobre a laicidade, apesar de sua transparente importância, se faz novo em nosso país. Segundo a teóloga, não raramente, a pauta política sobre direitos humanos e direitos da terra, por exemplo, era formulada e justificada com argumentos retirados da Bíblia sem que isso fosse motivo de problematização pela esquerda, que se encontrava alinhada aos teólogos e teólogas da libertação na defesa daqueles que foram empobrecidos e despossuídos pelo capitalismo.

No entanto, falar sobre liberdade religiosa é, ao mesmo tempo, falar sobre diversidade e respeito à possibilidade do outro, e de si, de ser e escolher determinadas formas de dar sentido à própria existência. Sendo assim, dentro da política, as justificativas para mobilizar ações públicas não podem encontrar respaldo no discurso religioso, pois esse conceito dentro de um Estado que é laico desde 1890, como é o caso do Brasil, se mostra abstrato quando tenta representar o senso religioso de aproximadamente 211 milhões de pessoas. Portanto, é necessário que nos perguntemos quem são os sujeitos que são referenciados por esse discurso religioso.

Percebemos que ele se faz atrelado à determinada religião e não à outra, o que não é um problema em si, visto que as religiões nascem e se desenvolvem dentro da própria linguagem. Quando uma liderança religiosa toma para sua fala ensinamentos sobre a forma de enxergar o mundo, por exemplo, é esperado que a construção do argumento se realize junto de convicções institucionais e morais de sua própria comunidade que é formada por pessoas que se reconhecem dentro de uma instituição que chamamos de religião. Ou seja, é natural que o embasamento religioso se faça a partir de livros sagrados, quando falamos de religiões que os tem, ou a partir de conhecimentos e sabedorias orais. O que temos que ter em mente é que a comunidade religiosa é constituída por indivíduos que enxergam sentido naquele discurso, e esses indivíduos são parte da sociedade como um todo que é diversa e mutável, assim como eles mesmos são diversos e mutáveis.

Quando uma liderança política fala, o discurso não pode se localizar apenas nas suas convicções pessoais, e aqui incluo a religiosa, visto que essa liderança política é também um agente público, e suas falas e ações devem representar as necessidades da população como um todo. Evidentemente, temos alguns focos de militâncias que são atrelados ao plano político desenvolvido pelas e pelos representantes quando se lançam como candidatas ou candidatos a determinado cargo público, mas esses focos de militância devem estar atrelados a um seguimento ético e normativo que garanta que os direitos da população, sobretudos de grupos minoritários, sejam respeitados: a constituição federal.

É preciso que entendamos a diferença entre uma liderança política e uma liderança religiosa quando buscamos debater sobre determinados assuntos que não dizem respeito apenas a uma parcela da população que vive de acordo com suas próprias tradições, que são também constitutivas da sociedade. O que não significa que para representar o povo é necessário abrir mão da fé ou da tradição religiosa, mas esse cargo representativo deve ser encarado por pessoas que estejam prontas para colocar as necessidades da população frente às suas convicções pessoais. O que não acontece quando testemunhamos, por exemplo, a fala pública do presidente da república sobre a necessidade de um juiz do Supremo Tribunal Federal que fosse “terrivelmente evangélico”; ou quando nos deparamos com a Bancada Evangélica e a midiatização da LGBTfobia e da intolerância religiosa — sobretudo contra religiões afro-brasileiras — que, além de ir contra a liberdade sexual e religiosa do outro, não representa o pensamento de todos os evangélicos dentro e fora do Congresso.

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Defender a laicidade não é, portanto, colocar a religião em perigo. Esse pensamento, apesar de recorrente, diz respeito a uma noção popular de entender como religião apenas o que diz respeito ao cristianismo. Nesse sentido, discurso religioso e sujeito religioso seria o mesmo que discurso cristão e sujeito cristão. E as outras religiões que têm suas próprias maneiras de significar o mundo são colocadas no lugar do exótico, folclórico e visto com menor realidade e seriedade. Não atoa não conseguimos pensar em ritos não cristãos sendo realizados em repartições públicas, sobretudo em escolas públicas, pois partimos do pressuposto de que a norma é ser cristão ou cristã, enquanto aqueles e aquelas que não o são seguem silenciados.

A teóloga Ivone Gebara nos disse, no congresso já mencionado, que aceitar que existem margaridas e violetas no mundo nos parece muito simples, mas quando percebemos que as pessoas são como as flores, tendemos a querer que todos sejam margaridas ou todos sejam violetas, pois respeitar a diferença quando saímos dos jardins e olhamos para a humanidade trata-se de um movimento mais complexo. Explorando um pouco a metáfora, como as violetas e margaridas não são mais ou menos flores por serem violetas e margaridas, não somos mais ou menos humanos por sermos religiosos ou não, ou por sermos de uma religião e não de outra. A diversidade deve ser não só o princípio da laicidade mas também o motivo de nos lançarmos na defesa dos direitos humanos, pois a humanidade não é mensurável – e que bom!