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O discurso religioso na modernização conservadora brasileira

O discurso religioso na modernização conservadora brasileira

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Comecemos essa reflexão com o conceito de liberdade. Segundo Norberto Bobbio, em seu Dicionário de Política, os escritos políticos raramente oferecem definições explícitas desse conceito, mas na maior parte das vezes, usamos o conceito de liberdade que foi construído pelo liberalismo clássico onde se defende a ideia de que a liberdade se relaciona com a proteção dos direitos fundamentais. De Locke a Spencer, sustenta-se que o Estado tem o direito de limitar a liberdade de alguém, unicamente, quando for necessário proteger os direitos fundamentais do outro. Portanto, uma pessoa que possua os direitos fundamentais garantidos, sujeita também aos deveres, é de fato livre.

O conceito de liberdade, hoje, é chave para compreendermos as discussões que estão em jogo no cenário político, cultural e religioso brasileiro. Muitas das disputas ideológicas acerca do conceito de liberdade, na atualidade, estão ocorrendo dentro dos espaços educacionais e das instituições religiosas. Foquemos na religião.

Imagem de愚 木 混 株 Cdd20 do Pixabay

As instituições religiosas representam as primeiras instituições que sistematizaram o conceito de liberdade. O cristianismo, por exemplo, traz em seu bojo um ideal de liberdade. Aponta, em destaque, para a liberdade espiritual e não terrena. Isso é, abandonar a vida em pecado, após aceitar os ensinamentos de Jesus, tornará o indivíduo livre, porém sempre servo de Deus. Uma liberdade contraditória, pois temos liberdade e servidão lado a lado.

Após o Renascimento e o Iluminismo, as definições religiosas de liberdade foram questionadas e, outras perspectivas, construídas. A partir da razão e da ciência os fiéis foram transformados em cidadãos e a sociedade, junto ao Estado, buscam o bem comum. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, em ser artigo dois define: Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição 1Declaração Universal dos Direitos Humanos. O conceito de liberdade, ao longo do tempo, foi ganhando contornos cada vez mais largos e concretos.

As breves e limitadas descrições feitas até aqui, sobre a construção do conceito de liberdade, busca trazer um alerta: esse ideal está ameaçado agora. Esclareço. O conceito de liberdade, que mudou ao longo do tempo e do espaço, na atualidade, vem sendo redesenhado. No entanto, a direção para a qual é conduzido parece limitador. Os ideais conservadores – lei e ordem, males do Estado de bem-estar social, o colapso da moralidade e da família, nação, autoridade, tradicionalismo – têm associado o conceito de liberdade ao elitismo, ao populismo e ao suposto resgate dos pilares cristãos do mundo ocidental. Vejamos o que disse Ernesto Araújo, chanceler brasileiro em um artigo “Já hoje o marxismo conclama a destruir o conceito de comunidade histórica, a nação, e não fala mais de liberdade, hoje quer um mundo de fronteiras abertas onde todos são imigrantes e ninguém pode identificar-se com sua terra nem com sua gente sem ser chamado de fascista”. Ele continua “um Deus poderia salvar o Ocidente, um Deus operado pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana”2Chanceler de Bolsonaro defendeu Trump como salvação do Ocidente..  A palavra liberdade tem sido usada para acobertar qualquer tipo de ação política ou institucional considerada como portadora de algum valor global e inquestionável. Essa perspectiva tem sido construída, em boa parte, baseada uma visão romantizada do passado, mas em que se acredita ser um passado onde a verdadeira moralidade reinava plenamente, onde cada um sabia do seu respectivo lugar, controlados por uma ordem natural.

Para esses grupos conservadores, somente por meio da Bíblia é possível a salvação, inclusive da nação. Somente o livro sagrado oferece o caminho para uma sociedade verdadeiramente ética e moralizada. Veja o Ministro da Educação, Milton Ribeiro, após ser denunciado por Homofobia no STF: “A Bíblia diz que chegaria um momento em que as pessoas confundiriam o certo e o errado. O inquérito que eu enfrento no STF tem a ver com isso, com algo que Jesus não teve receio de dizer que não é o caminho certo”. “Meu coração está tranquilo porque não fui chamado no STF para responder por desvio de dinheiro ou corrupção, mas por que eu disse o que a Bíblia diz”. Ainda disse que seu papel como Ministro de Estado é “mais espiritual do que político porque o governo quer tirar o Brasil do rumo ao desastre”3Ministro afirma que responde inquérito no STF por defender o que diz a Bíblia. No seu Livro, Educando à Direita, Michael Apple 4 APPLE, Michael W. Educando à Direita: mercados, Padrões, Deus e Desigualdades. São Paulo: Cortez, 2003. APPLE, Michael W. Conhecimento Oficial: A educação democrática numa era conservadora. Rio de Janeiro: Vozes, 1993. nos diz […] para esses grupos […] a Bíblia é um guia apropriado para a política, o governo, os negócios, a família e todas as questões da humanidade. Em outro trecho afirma que um sacerdote conservador fez a seguinte pergunta à sua congregação a respeito de um problema social incômodo: Será que a Bíblia tem algo a dizer sobre isso? Ou vamos deixar o governo nos enfiar tudo goela abaixo? As Escrituras não possuem erros ou falhas, portanto, ela representa a verdade de Deus que nos foi integralmente revelada e que portando deve ser seguida e obedecida.

A ciência, no entanto, solapou a autoridade bíblica, pois gradualmente entrou na lógica cotidiana dos indivíduos. A secularização removeu do lugar central símbolos e valores religiosos para a periferia. Como exemplo, temos Damares Alves, ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos: “A igreja evangélica perdeu espaço na história. Nós perdemos o espaço na ciência quando nós deixamos a teoria da evolução entrar nas escolas, quando nós não questionamos. Quando nós não fomos ocupar a ciência. A igreja evangélica deixou a ciência para lá e ‘vamos deixar a ciência sozinha, caminhando sozinha’. E aí cientistas tomaram conta dessa área5Em vídeo, Damares Alves diz que Igreja evangélica perdeu espaço nas escolas para a ciência“. Portanto, hoje, as nossas liberdades constitucionais estão ameaçadas, pois entende-se que é preciso reformar o mundo secular e científico. É preciso uma modernização conservadora.

A declaração de que o Brasil é uma nação cristã representa a afirmação de uma visão de mundo que acredita na existência de uma aliança nacional e popular com Deus. Por meio dela, compreendemos a visão de mundo conservadora, que acredita que as instituições públicas e privadas, os meios de comunicação de massa, as escolas, o movimento feminista e LGBTQIA+ são anticristãos, pois questionam os valores revelados pelas Escrituras e, portanto, ameaçam a verdadeira moralidade que reinava plenamente no passado, onde cada um sabia do seu lugar. O resultado disso é degeneração moral e a desintegração da sociedade que vivemos. Todos esses movimentos levam ao socialismo e ameaçam a verdadeira liberdade e, por isso, devem ser combatidos. Entendem que suas tradições são desrespeitadas e sua visão de mundo, obviamente a verdadeira e adequada a todos, está sob ataque.

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Temos, na perspectiva conservadora, uma agenda restauradora que acredita ser possível tornar a nação uma espécie de Éden. Uma nação que reencontra o cristianismo perdido. Esse projeto restaurador pretende lutar em várias arenas e frentes diferentes ao mesmo tempo. Não estão focados apenas em suas igrejas, mas também, na educação, na cultura, nos meios de comunicação, nas instituições estatais/privadas e na economia. É necessário tonar-se realmente dominante, para assim, alterarem nossas categorias de análise da realidade.

Diante do exposto, esclareço que, não tenho as respostas necessárias para frearmos as ameaças as liberdades constitucionais historicamente conquistadas. As saídas devem ser construídas coletivamente. Mas acredito que um dos elementos mais importantes para encontrarmos essas repostas refere-se a compreensão das discussões e processos que estão se desenrolando. Esse texto traz, portanto, um ponta pé inicial nessa direção.

Por fim, destaco que um dos grandes objetivos do movimento conservador, é buscar mudar o senso comum, alterando os significados de palavras e conceitos chaves que utilizamos para compreender o mundo, tal como o de liberdade. Como nos diz George Orwell no livro 1984: “De onde estava Winston conseguia ler, em letras elegantes colocadas na fachada, os três lemas do Partido: Guerra é paz, Liberdade é escravidão e Ignorância é força6Owell, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2005.. A tarefa do movimento é ressignificar aquilo que pensamos, bem como nossas instituições e nossas novas identidades. Enfim, estamos mergulhados em uma guerra cultural, vivendo uma coalizão de resistência a modernidade. Estamos submersos na modernização conservadora.


Notas