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É hora de uma nova reforma: a íntima!

É hora de uma nova reforma: a íntima!

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Os sentimentos de inquietude e de insatisfação que estiveram no cerne do movimento de Reforma dos protestantes, também podem ser percebidos até os dias de hoje, nas religiões de matriz africana. A diferença é que no Candomblé, Umbanda, dentre outras, a luta e os protestos são para dar um basta aos ataques e desrespeitos que eles sofrem.

Na medida em que a eterna resistência e luta contra o preconceito e desrespeito religioso ocorre, sem cessar, o que se pretende questionar é a ideia de que há uma hierarquia das crenças (na maioria das vezes vinda de cristãos) onde a africana é a base e a cristã o topo. Logo, o que é preciso “reformar”, combater, é a ideia de supremacia da fé cristã sobre a do Candomblé e Umbanda, por exemplo.

E o que poderia surgir como consequência reformadora desse processo? O apontamento para caminhos de diálogos com a diferença. O que está por trás de toda resistência das matrizes africanas, além da manutenção do legado e cultura ancestral, é o desejo de enfatizar a não existência de verdade absoluta em um mundo tão diverso e complexo.

Isso só é possível, a partir de outra reforma: a íntima, que propõe, na maioria das religiões, uma espécie de (re)conexão, (re)ligação ao que é cultuado de fato, a partir das várias vivências espirituais. Então, deixar de empunhar cacetetes e violentar o que é sagrado para o outro é o que essa nova Reforma quer ensinar.

Algo interessante a se notar no meio evangélico, e que dificulta enormemente a noção dialogal, é a sua dificuldade na forma de lidar (Diálogo entre o “discurso evangélico” e outras áreas?, por Fabiano Veliq) com aquilo que é diferente de suas concepções de mundo. Do ponto de vista da própria formação do discurso evangélico, esse tipo de dificuldade é muito facilmente compreendido dada a sua “tara” com a noção de certeza.

Um lugar onde tal discurso se mostra de forma extremamente estranha é na relação estabelecida entre as igrejas evangélicas e as religiões de matriz africana, também chamadas de religiões afro-brasileiras. Para além de toda discriminação envolvendo as pessoas negras e suas culturas, que no caso brasileiro diversas vezes é associado a algo ruim, (o que é muito sintomático dado a presença maciça da população africana na constituição do povo brasileiro), há ainda a questão ontológica/metafísica envolvida, que para algumas pessoas torna qualquer tipo de diálogo impossível.

Em via de regra, para o evangélico comum, a relação é muito simples e pode ser resumida a formulação de que ”tudo associado a religiões de matriz africana pode ser demonizado e deve ser evitado a qualquer custo”. Não há nenhuma possibilidade de diálogo entre os dois ramos religiosos. Tudo associado a Orixás, Nkises, Voduns deve ser evitado sob a constante ameaça disso “abrir portas” para o mal sobrevir à pessoa ou à sua família. Em diversas igrejas há os chamados “cultos de libertação”, que se visam “expulsar os demônios” e em vários casos os nomes dados a esses demônios são nomes retirados da própria tradição de religiões africanas. Nomes como “tranca-ruas”, “pombo-gira” ou “preto velho” são transformados em demônios que precisam ser expulsos da vida do sujeito pelo fato de serem eles que estariam causando todo o mal.

No meio protestante, a postura do diálogo se mostra um pouco melhor que no meio evangélico (embora várias vezes meio “truncado”) e há diversos movimentos de trabalhos conjuntos entre o protestantismo e as religiões de matriz africana. No entanto, tal prática ainda não se mostra a tônica nem mesmo entre os chamados protestantes. Um movimento interessante do diálogo entre as igrejas protestantes e as religiões de matriz africana, caso alguém tenha algum interesse, é a Fundação Luterana de Diaconia (www.fld.com.br).

Podemos perceber que, entre os adeptos das religiões afros, o tom dialogal se sobressai e talvez eles tenham mais facilidade no trato com o diverso por um fator simples: a relação com a natureza. Pensar o candomblé, por exemplo, é pensar necessariamente na natureza, uma vez que as divindades (e não deuses) ali reverenciadas são espíritos ligados à natureza, que é diversa por si só. A natureza é o grande exemplo de que o criador não gosta de monotonia, de nada igual. Se quiser prova disso é só olhar ao redor quantas espécies existem de animais, plantas e elementos na terra.

Antes de tudo, há que se conhecer para falar. Considerar, por exemplo, que há diabo no Candomblé e/ou umbanda é o mesmo que, em certa medida, reforçar a estratégia de um discurso de dominação que foi bem implantado por parte dos nossos colonizadores, uma vez que ele é bem particular da tradição cristã.

Embora possua, em sua essência, a reverência a várias divindades ligadas à natureza, o Candomblé é uma religião monoteísta, ou seja, que cultua um único Deus – Nzambi (Nação Angola) –  Olorum/Olodumare (Nação Ketu) dentre outras possíveis nomenclaturas. Entendendo a ideia do culto a essas divindades, como ela realmente é, possibilita dizer que o Candomblé cultua ritualisticamente a energia da natureza em suas múltiplas manifestações, das nuances mais belas à intensa devastação a que nos submetem.

Os umbandistas são ainda mais (co)irmãos dos cristãos porque têm em seus fundamentos e cultos, forte ligação com aspectos do Cristianismo como a reverência a Jesus Cristo e alguns santos da igreja católica. Importante ressaltar que Candomblé e Umbanda não têm a Bíblia como um livro sagrado, mas partem principalmente da oralidade para compor a sua pragmática e valores.

Podemos perceber que as religiões de matriz africana, como toda religião, buscam o contato com a esfera do sagrado, e para isso organizam-se de uma determinada forma, dado o seu contexto cultural. Nesse sentido, podemos dizer que, do ponto de vista do objetivo das religiões afro-brasileiras, o que está em jogo é o mesmo objetivo do cristianismo, ou seja, o contato com aquilo que consideram sagrado.

Há, obviamente, uma diferença ontológica (do que é considerado existente) nas formulações cristãs e de outras religiões. A ontologia cristã não aceita essa personificação da natureza proposta por algumas religiões afro-brasileiras, não aceita a existência dos “orixás/Nkises”, assim como as religiões afros não trabalham com a ideia de “diabo”, “demônios” com essa nomenclatura, coisa que para um evangélico comum, por exemplo, é tido como de ”indubitável existência”. A diferença de entendimentos, no entanto, não deve ser motivo para a demonização das religiões afro-brasileiras.

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Os “outros 500” da Reforma, talvez seja fazer, sobretudo cristãos, entenderem que é possível dialogar na diversidade e construir aprendizado. A diferença de opiniões e apreensões da realidade não torna nem candomblecistas, nem umbandistas, nem cristãos, em algo a ser combatido, evitado. É a, já tão falada, #ConhecerParaRespeitar.

Obviamente que a questão que propomos não é “igualar” todas as religiões afirmando que todas elas servem ao mesmo Deus, etc, o que seria um desrespeito às especificidades de cada formação religiosa, uma afronta à própria concepção de Deus evidenciada em cada religião. Mas, o que se pretende, antes de tudo, é mostrar que a demonização feita por grande parte das igrejas, principalmente evangélicas, em relação às religiões de matriz africana, tem mais a ver com uma discriminação de cunho social e ideológico do que com uma questão ontológico-metafísica.

O Candomblé, a Umbanda e diversas religiões afro-brasileiras, além de serem ricas em cultura e em suas funções sociais, também são pilares que constituem nossa sociedade há muito tempo e precisam ser respeitadas como quaisquer outras práticas religiosas.

Diante do espírito da Reforma proposta por Lutero há 500 anos, sem dúvida há muito que “reformar” no diálogo entre os cristãos (protestantes, evangélicos, católicos) e os cultos de matriz africana.

A reforma protestante, antes de tudo, foi uma reforma pedagógica. Ao propor o livre exame da Bíblia, propor que a Bíblia deveria ser lida por todos em sua língua materna e realizar uma tradução da Bíblia voltada para o povo, Lutero iniciava talvez a maior reforma pedagógica já vista na Europa. O texto sagrado é dado às pessoas, que recebem também a dignidade de poderem, elas mesmas, entenderem os mistérios divinos. O povo aproxima-se, então, do Verbo. A palavra se faz texto e habita entre eles.

O grande desafio atual para se manter o “espírito” da Reforma de Lutero, torna-se não a sua comemoração como evento histórico, mas sim, uma postura de rompimento com ideias que se afastam do ideal cristão.

Lutero, então, pode ser visto como um divisor de águas na história da igreja, e sua fé com certeza pode ser considerada um exemplo para nós, assim como todo o seu empenho de fazer a igreja retornar às suas bases no intuito de reformar o catolicismo. No entanto, no mundo atual, não serão novas teses que farão com que a igreja refaça seu caminho em direção ao próximo, mas sim, um retorno a uma espiritualidade que tem no próprio Deus o seu foco, e aqui, concordando com Levinas, penso que o próprio Deus só pode ser encontrado na figura do próximo. Que passemos a vivenciar uma nova fase da Reforma: o exercício do diálogo e respeito à diferença do outro.