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A religião como jogo e o “estraga-prazeres” de Huizinga

A religião como jogo e o “estraga-prazeres” de Huizinga

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O trabalho de um cientista da religião é observar o fenômeno religioso e descrevê-lo com ferramentas adequadas que possam articular realidade e crítica (ou seja, a capacidade de perceber as nuances sociais e descortinar sem piedade o que precisa ser descortinado). Não crítica sobre o vazio. Ou seja, não se trata de uma crítica sobre divindades. Mas uma crítica no campo social. Em outras palavras: o cientista da religião não está preocupado com o que a divindade pensa ou quer, porque a divindade só pensa e deseja aquilo que o fiel pensa e deseja. Esse é um argumento que se pretende respeitar o leitor e a própria consciência crítica. Não se espera nada de deuses. Portanto, há que se perceber o que o ser humano diz que deus diz. A partir dessa construção política, porque é política, e estética, porque é estética, o cientista da religião denuncia, porque é seu trabalho denunciar com as ferramentas adequadas. Não se trata de um juízo de valor infundado. O argumento é baseado em dados empíricos. E de dados não se foge. Os dados são amigos, como já dizia o psicólogo Carl Rogers.

O bom teólogo também deveria agir desta maneira. Vasculhar o fenômeno e descrevê-lo. E por que não o faz? Porque prefere ser, na maioria das vezes, objeto de estudo. O teólogo é estatística. O teólogo, essa figura tipo ideal weberiana, é um sujeito que estuda 3, 4, 6 anos de filosofia, de sociologia, de antropologia, de história da igreja e mais um caminhão de disciplinas e engaveta na primeira oportunidade. Por quê? Porque tudo isso se torna desinteressante no jogo confessional. O teólogo não sabe utilizar as disciplinas em seu favor. Antes, as submente à teologia confessional, tal como se fazia até o iluminismo (e, na verdade, continua). O teólogo joga o jogo da tradição e só se enxerga teólogo por causa da função de reproduzir o conteúdo oco de seus ancestrais.

Johan Huizinga, em seu livro “Homo Ludens”, dizia que o jogo é um fenômeno cultural. A sociedade é criada, recriada e vivida por jogos. Ela aprende por meio de jogos dos mais variados. A religião também é um jogo. Os rituais, o figurino, o discurso, a impostação de voz, a reverência como comportamento geográfico (templo), as coreografias, o silêncio, o barulho, o que causa o riso e o que causa o choro, tudo isso faz parte de um jogo bem definido. Mas o autor entende que existe alguém que pode quebrar as regras desse jogo e contar o que ainda parece ser um segredo aos participantes: “É um jogo! Isso não passa de um jogo!”. Esse sujeito que grita “É um jogo!” do outro lado da rua é chamado por Huizinga de “estraga-prazeres”. Bem, se ele é responsável por estragar prazeres significa que o jogo produz prazeres. E como isso ocorre? Porque é fácil, segundo Reich, Freud e tantos outros, produzir desejo a partir do jogo. O fetiche sexual é um jogo, por exemplo. Jogo de sedução, mas é. E no que se refere à massa, o campo religioso sabe conduzir muito bem as volições.

O “estraga-prazeres” não é bem-vindo na teologia porque quem padece, via de regra, não são os membros, os fiéis de determinada comunidade religiosa, mas seus líderes. Estragar o jogo da dominação religiosa traz grandes prejuízos e revela os bastidores das regras que foram estabelecidas por poucos e que só podem ser alteradas se trouxerem benefícios a estes mesmos. O “estraga-prazeres” acaba com o mundo mágico e, por isso, querem lançá-lo para fora, excluí-lo por ser uma ameaça ao jogo.

No campo da teologia, o “estraga-prazeres” também é conhecido como “liberal”, “herege”, “era dos nossos” e tudo aquilo que o distancia da chamada “sã doutrina”. Na verdade, a sã doutrina só é sã para aqueles que têm o controle do discurso e buscam hegemonia religiosa pela esfera política. A sã doutrina é a anilha que ajuda a marcar os fiéis inofensivos e limitá-los à gaiola de ouro, mas gaiola. Obedecer a sã doutrina pela boca de seus líderes faz parte das regras do jogo religioso.

Há que destacar algo importante: no ambiente da religião, um teólogo liberal não é ainda um “estraga-prazeres” porque ele, de uma forma ou de outra, ainda é uma peça que se movimenta nesse tabuleiro. Não é um herege, uma vez que tomou a escolha (porque heresia é escolher) de crer de maneira diferente, mas crê. Não é um que era do grupo e não é mais, porque estar fora não significa que o jogo está fora dele. Há muitos teólogos que se classificam como “progressistas”, todavia, estão encharcados até o último fio de cabelo do jogo religioso. Utilizam-se dele em seus palanques da ética, dos direitos humanos, em defesa de minorias… Todo esse esforço em converter o jogo religioso confessional em progressista tem a mesma base: o jogo onde a motivação é construída no mito. Tira o mito e sobra nada.

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Portanto, como já disse em dois textos nesta mesma magazine “O conservadorismo da esquerda evangélica na politica“, ” Jesus o legitimador da politica brasileira“, os evangélicos de esquerda no Brasil não são “estraga-prazeres”. Eles estão sujeitos ao mesmo jogo que os evangélicos da direita, de Bolsonaro: os códigos morais religiosos. E por aí, não se constrói um país sério e com indivíduos autônomos. Dentro desse cenário, é impossível construir qualquer coisa caso não seja destruída a pseudo-imagem da “esquerda evangélica estraga-prazeres”, que busca alimentar a democracia a partir de discursos que não entregam as chaves das portas aos seus ouvintes, antes, os mantêm presos ao sistema do jogo com seus símbolos e códigos de libertação baseados em dogmas. É fácil encabrestar. Já vi gente ler o mito dA Caverna (de Platão) e interpretar o sol como Jesus. Pode?

Talvez este texto ajude, por sua forma iconoclasta, ampliar a crítica à imagem do que não é a esquerda progressista, mas diz insistentemente que é, embora eu mesmo já não guarde nenhuma esperança.