O racismo religioso como tecnologia de destruição
As discussões sobre o racismo tocam, de modo profundo, nas feridas de uma sociedade em que a cultura, a história e o imaginário se consolidaram em processos abruptos de destruição da dignidade, do corpo e da tradição da população negra. Trazer à tona um debate como esse é urgente, sobretudo numa realidade social que mascara sua história, em nome de uma suposta harmonia entre as raças contada a partir da romantização da miscigenação que, como sabemos, atendeu — enquanto projeto político —, aos interesses de exclusão e extermínio da população negra e de seus vestígios.
A construção dos nossos olhares acompanha uma lógica representativa forjada nos modelos de sujeito, vida e legitimidade que nos foram apresentados como possíveis. Nesse contexto, devemos nos perguntar se os corpos, as identidades, as estéticas, as culturas e as expressões de fé de matrizes negras, sobretudo, na força das tradições da (s) CTTro – Comunidades Tradicionais de Terreiro, são trazidas para a nossa realidade mais cotidiana no lugar da reciprocidade, do prestígio e da validade? Se a resposta for não, isto é, se todas as insígnias de negritude, inclusive as experiências religiosas que cultuam um sagrado que é negro, não estiverem imediatamente alocadas na região do reconhecível, do possível e do não perseguido, tratar de reciprocidade se torna um desafio.
O racismo, segundo Grada Kilomba em seu livro, Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano, é uma “realidade violenta”. Vale frisar que os graus de desumanidade e desumanização são múltiplos e são eficazes, pois se entranham de forma banalizada nas ações cotidianas. A morte — simbólica ou não — de pessoas negras é consumida e validada reiteradamente quando olhamos ao nosso redor, na mídia, nas instâncias políticas, nas disputas de poder e percebemos que as estruturas de branquitude desejam naturalizar o apagamento, o silenciamento e a destruição das pessoas negras.
Esse efeito nefasto de “legitimidade” que, nos dizeres de bel hooks, emana de uma “branquitude aterradora” também toca as discussões sobre a experiência religiosa e delimita o que são, nesse contexto, centro e margem.
Ao percebermos que as religiões de matrizes africanas e todas as pessoas que se vinculam a essa tradição, sofrem — direta ou indiretamente — marcações, exclusões e violências, fica difícil tratarmos da intolerância como se ela fosse um movimento de subjugamento do outro que ocorre de modo aleatório e que não possui, ao tratarmos das dinâmicas no Brasil, um sonar que é ativado no instante em que um atabaque é tocado, que as palmas se intensificam e que o xirê – conjunto de cantos e danças de origem africana – toma forma, pois todas essas expressões reverenciam divindades que lutam, que amam, que dançam e que se movimentam na direção do comum.
O que está no cerne do racismo religioso é um olhar que estigmatiza, apaga e impede a existência do que seja considerado fora de uma identidade conservadora e fossilizada, isto é, a alteridade é sempre ofensiva, sempre transgressora e merece ser dizimada do mesmo modo que os cinco milhões de pretos e pretas escravizados para a construção do Brasil.
A escravidão sempre se deu em nome do racismo. O racismo sempre foi justificativa para a escravidão. O racismo sempre esteve a serviço de um sistema de desumanização de corpos pretos e da criminosa transformação desses mesmos corpos em produtos rentáveis ao sistema capitalista. Nesse sentido, compreender, aceitar e respeitar essa cultura-legado africana no Brasil seria, a um só tempo, reconhecer o crime que se refere às origens do racismo e re-humanizar o que agora não deve existir como força de resistência que viola o tecido social do poder. Isso certamente está no cenário da satanização, desrespeito e perseguições de tudo que se relaciona à cultura preta.
Se eles – branquitude acrítica – aceitarem esses saberes tradicionais de origem africana como parte da formação da identidade brasileira, assumem também o crime que foi a escravidão e todas as consequências nefastas do racismo. Talvez daí advenha o movimento que chamamos hoje de negacionismo. Negar apaga crimes, apaga o racismo, apaga a escravidão, apaga mais de dois milhões de mortes de seres-humanos-pretos escravizados. Negar apaga existências e, para parafrasear a escritora e ativista Chimamanda Ngozi, a negação edifica um novo paraíso para os negacionistas e mantém no inferno aqueles que são intencionalmente retirados da história como ela se deu.
Pensamos, inclusive, que paralelamente ao ódio das marcas de negritude imbricadas no (s) Candomblé (s) e nas demais CTTro operam forças de despolitização e enfraquecimento, pois a estrutura de branquitude que se modula na violência e no individualismo não suporta ver que os Candomblés respiram comunidade, partilha, movimento e responsabilidade. Trata-se de um desejo movido pelo racismo e, ao mesmo tempo, de uma tentativa de manter um status quo composto por sujeitos neutros, despolitizados e longe da construção ética dos espaços comuns, de fato comuns.
O racismo enquanto estrutura de poder destrói a esperança e a solidariedade, pois enfraquece os laços de humanidade que se tecem no encontro entre as diferenças. Esse encontro, por sua vez, não suprime a tensão; ao contrário, ele requisita a multiplicidade de sujeitos, corpos e narrativas para que o horizonte político não se erija nos processos tácitos ou explícitos de silenciamento e morte.
Não se pode negar que o racismo religioso atende também à necropolítica. Ele, por si só, é a arma apontada para as tradições sagradas não hegemônicas, para seus praticantes e para todos aqueles que, de alguma maneira, estão vinculados aos sistemas de crenças pretos. A necropolítica não decide apenas os corpos e mentes que devem viver ou morrer; há uma necropolítica que também decide quais culturas e crenças podem existir. O racismo religioso dita quais crenças devem ser perseguidas e dizimadas e quais podem existir com liberdade e prestígio. Por meio dessa forma de racismo, decide-se quais sistemas de crenças devem aceitar a subalternização e quais são soberanos e subjugadores.
O racismo religioso — como tecnologia de destruição das religiões de matrizes africanas — reverbera, de forma sistemática, o lugar de subalternidade construído no imaginário, nas cenas políticas e nas disputas de poder. Ele, o racismo religioso, demonstra a vertigem que sofre o sujeito que é lido como norma quando ele é tensionado a sair do seu lugar construído como impenetrável. Nessa modalidade, o racismo demonstra que as distâncias, as construções de subalternidade e de manutenção de violência no Brasil têm rosto, e que negar essa dinâmica faz com que nós, embebidos de dissimulação, não tracemos outras rotas de encontro, longe dos nossos desejos (conscientes ou não) pela aniquilação do outro.
THIAGO TEIXEIRA é Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Mestre em Filosofia pela FAJE. Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Editor e Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com. SIDNEI BARRETO NOGUEIRA é Doutor em Semiótica e Linguística Geral pela FFLCH-USP. Coordenador e Professor do Instituto Ilê Ará. Babalorixá da CCRIAS – SP. Escritor do “O que é Intolerância Religiosa” da Coleção Feminismos Plurais – no prelo. Colunista da Carta Capital. E-mail: sidnei_barreto@outlook.com