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A Necropolítica e a face perversa do “sujeito” norma

A Necropolítica e a face perversa do “sujeito” norma

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Chegamos ao fim desta sequência de textos. Todo o nosso itinerário até aqui foi marcado pela denúncia e pela reflexão. Embora seja o término deste circuito de artigos que desmascaram pontos contundentes do racismo e dos seus desdobramentos, não cessa o nosso interesse ativo de consolidar outro horizonte de encontro, isto é, um lugar profundamente pautado no reconhecimento.

Frisamos que a composição de reconhecimento que requisitamos foge àquela difundida e consumida em muitos lugares. Nesta compreensão publicizada e comercializada,  a diferença é suprimida. Nela o discurso transita pouco, posto que o seu alcance retorna a si e não se choca com o outro, a não ser como força de seu apagamento. Nossa perspectiva se sustenta no reconhecimento como ampliação de horizonte, tensão e, neste contexto, como recusa profunda da violência que se esconde atrás do ideal homogeneizador da igualdade.

É imprescindível compreender também a nossa força, bem como a nossa reação em relação às estruturas de violência. Trata-se de uma reflexão-prática que opera longe de todos os ataques infundados que sofremos, posto que estes nos querem alocados numa posição de vítima absoluta.

Não somos vítimas absolutas e nós recusamos este lugar. E por isso dizemos: não somos vitimistas! A tentativa de nos colocar neste lugar, mantém o desejo desenfreado de nos tornar sempre vitimados.  Nós não ocupamos mais essa cadeira, nós a quebramos com a força da nossa narrativa e com a potência da nossa ancestralidade que nos une e nos torna capaz de seguir. Somos ainda atacados por todas as estruturas que nos querem impotentes, mas nós reagimos. Insurgimos frente das catástrofes fabricadas e deliberadamente planejadas para impor o fim dos nossos mundos, como aponta o Comitê Invisível em Crise e Insurreição.  Recusar o lugar de vítimas nos posiciona como sujeitos que se organizam, se juntam, se mobilizam e, com isso, instauram novas e ousadas possibilidades de vida.

Antes de irmos e deixarmos o eco de nossas reflexões sobre racismo, perversão, dissimulação, queremos apresentar mais um ponto de tensão que, embora esteja presente nos cenários políticos, sociais e morais, não o nomeamos, por acreditar piamente em sua “naturalidade”: a necropolítica.

Ao nos aproximarmos mais uma vez de Achille Mbembe, destacamos a sua leitura importantíssima para a cena contemporânea e, mais, a genialidade que perpassa a sua leitura de mundo, sobretudo, por reinterpretar a realidade não pelos olhos do que segrega, mas por ressignificar as suas categorias políticas a partir da insurgência dos que forjados à margem. A Necropolítica se sustenta como uma economia de poder, ou seja, enquanto uma organização da vida (e da morte) política, social, econômica, estética e cultural. A partir desta ótica nós tornamos “normais” as zonas de segregação. Nela, os corpos marcados e construídos como os “sem vida” são incutidos num destino de violência que orquestra e domestica a sua narrativa para aceitar, como uma necessidade, a sua impotência. Mbembe  afirma que, nessa lógica, a violência se manifesta como uma espécie de “etiqueta”.

Numa visão de mundo pautada na Necropolítica, os sujeitos que leem a si mesmos como norma ou vida, desejam — mesmo que não assumam —, manter à sua volta um estado mórbido. Seu real interesse é a morte dos que se expressam à curva, ou seja, que apresentam e se afirmam na diferença. Ele não usa mais uma arma, ele é a própria arma, que se volta o tempo todo ao outro. Não se trata mais de um instrumento destinado à morte, mas de toda uma lógica que deseja constantemente o aniquilamento do que aparece marcado como a exceção, num mundo construído pelos que se pensam universais e não relacionais.

Um “mundo de morte” é constantemente criado entre nós. Não nos damos conta de que ao negligenciar uma história de segregação, uma estrutura amplamente destoante e destituir a humanidade de pessoas negras, mantemos uma organização de controle e uma soberania que se entranha em todas as formas de manutenção do seu poder.

A tentativa de reificar as consciências, isto é, de criar uma cortina de fumaça sobre o racismo e dissimulá-lo, não faz com que as mortes de Babalorixás e Ialorixás deixem de ser comemoradas nas páginas das redes sociais, não faz desaparecer também a onda de violência que assola os templos de religiões de matrizes africanas no Brasil e, de modo, mais profundo, não apaga o histórico de desigualdade naturalizado que ainda desenha as relações raciais, no Brasil.

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Devemos nos manter atentos às políticas de morte (simbólica e efetivas) que atravessam a nossa existência e que constituem a nossa percepção sobre o mundo. Assim como afirma Byung-Chul Han em “O que é o poder?”, um dos piores condões é aquele que se manifesta como a construção de uma adesão. A sua destruição se dá no ato de introjetar o interesse do soberano, ou seja, na vontade que não fala “apenas na exceção, mas também, na normalidade”. A sua destruição se dá no ato de introjetar o interesse do soberano, ou seja, na vontade que não fala “apenas na exceção, mas também, na normalidade”. É urgente ressignificar nossos elos com o mundo, criticando e desmascarando aqueles que desejam a manutenção da morte e a invisibilidade do outro, enquanto ele se manifesta como vida.

E nossa denúncia não caminha para a segregação, não se apressa em produzir novos vazios, nem se arvora para o outro, antes, começa por acalentar a nós mesmos: denuncia-se a negligencia do acolhimento com gestos de acolhimento. Os que foram sentenciados pela ausência precisam fazer a si mesmos presentes: cuidadores a si. Autoria. É preciso que o abraço preceda à denúncia. O racismo – a hierarquização social que rejeita a existência de outro – atravessa e sangra primeiramente o nós e, só depois, é acontecimento social. E, a resposta, deve iniciar nesse nós, nesse lugar em que se é esquecida a barbárie cínica do cotidiano. Reconhecer a nós mesmos como sujeitos, ressignificar as possibilidades de existência: coautoria. O abandono dos lugares de extermínio, de subalternidade. O despego à autoreprodução das marcas segregadoras: o maquinário de moer gente de dentro para fora. É preciso fazer ver o pior desdobramento do racismo: sua passagem alheia, a chegada sorrateira, morada desonesta em nossas consciências. Apropriação, metástase. Adoecimento e vazio. Ausência de possibilidades. É preciso insurgir.

A segregação, por vezes, opera mesmo no discurso que se anuncia inclusivo. A laicidade, a seu turno, celebra a promessa da separação de interesses religiosos daqueles públicos estatais. Aponta para a possibilidade da diversidade. Exalta uma alteridade nas relações sociais determinadas pelo elemento religioso, para apenas em seguida, servir de álibi a partir do qual são perpetradas diárias experiências de extermínio dos povos que ousam pensar (e viver) o sagrado em cores dispares daquelas pinceladas pela religião oficial. A diversidade laica se encarcera nos limites da norma constitucional, sem forças para inibir as violências da religião, que atravessam, sangram, silenciam, passam alheias, chegam, sorrateiras, fazem dolorosa morada, tornam-se naturais, imutáveis, parte da paisagem que conforma a experiência.

A crítica precisa ressoar de lugares outros, inaugurar espaços e fazê-los emergir na experiência. Deixar vir novo saber e ser.