Now Reading
Entre a perversão e a dissimulação heroica mora o racismo religioso

Entre a perversão e a dissimulação heroica mora o racismo religioso

blank

O perverso é aquele que empreende terror e destruição. Os elementos que este personagem usa para subjugar podem estar à mostra, ou não. Neste sentido, é possível que estes princípios sejam trazidos ao campo do natural, do necessário e, por meio de perversão e dissimulação, para o lugar do heroico. A sua aproximação com o discurso de poder e de legitimidade homogeneizadas, fazem com que o perverso, embora seja atravessado pela corrupção e pela degradação das inclinações ético-morais, seja, por vezes, aplaudido em seus atos de violência.

A sua disposição em relação ao mundo é marcada reiteradamente pelo ódio. O seu elo com a realidade e com os outros se dá quando ele decide agir movido pelo desejo de supressão daqueles que são  marcados como “a exceção”.  É preciso deixar claro que, embora pensemos na perversão como ataque direto, a sua manifestação acontece, por vezes, de forma tão sutil e naturalizada que seus efeitos não são vistos em relevo. Isso não quer dizer que o silêncio no qual se realizam não seja devastador, ao contrário, seu efeito de destruição é imenso, dado a dificuldade de perceber imediatamente os seus ruídos.

O racismo, como uma economia de poder, ou seja, enquanto organização das estruturas da realidade, articula os modelos de consciência e de percepção do mundo. Para além de demarcar os lugares políticos, econômicos, sociais e teóricos, este fenômeno acontece também como força constitutiva das lentes de percepção da realidade.

Nós ficamos muito assustados, por exemplo, quando os Terreiros de Candomblé são atacados, depredados ou inteiramente destruídos, como aconteceu a pouco, dia 11 de julho de 2019, no município de Duque de Caxias/Rio de Janeiro. Este terreiro foi devastado pelos que se intitulam os “traficantes de cristo”. Em 2018, outro templo de Candomblé, foi alvo de vandalismo e, mais, os líderes religiosos foram expulsos do Ilê e da região, por traficantes que, além de destruir as insígnias do culto à ancestralidade, pixaram — em letras garrafais: “Jesus é o dono deste lugar”. Este incômodo, no entanto, não se intensifica, na mesma proporção, quando na vida mais cotidiana, o arcabouço simbólico, sagrado, ritualístico e cultural de negritude é desconfigurado, e publicizado fora de seu sentido original.

Alguns pontos destas cenas apresentadas a pouco nos chama a atenção. O primeiro deles está na capacidade dissimulada de reprodução de uma violência estruturalmente articulada, contra as religiões de matrizes africanas. Os símbolos de afirmação da ancestralidade negra são, nessa lógica, corruptíveis, inclusive, pelos corruptos.

Como modelo de subjugamento e morte dos que são lidos como exceção, o racismo opera como afirma Silvio de Almeida, em O que é racismo estrutural? ,  como “ um complexo imaginário que a todo momento é reforçado”. A sua “sutileza” e “eficácia” são percebidas, quando todos, sem exceção, interiorizam a sua ideologia de silenciamento e destruição. Esta, por sua vez, tem como pano de fundo, a raça, enquanto componente politicamente construído. Ela ocorre como invenção de um outro que, nas palavras de Achile Mbmbe, em seu livro Necropolítca, se manifesta enquanto “ uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria o meu papel de segurança e de vida.”

Outro ponto importante que nos chama a atenção está — nos casos supracitados — no choque entre o desejo de destruição e o complexo simbólico, cultural e religioso de negritude. A depredação é, para nós, uma cena concreta de uma consciência generalizadas. Ela é o desdobramento da incapacidade de perceber que não há um só lugar para o fenômeno religioso, bem como para a manifestação da vida, dos corpos e das narrativas. É muito curioso perceber que as faces da negritude são deslocadas, no campo imagético, linguístico e religioso, daquilo que é bom ou belo.

Há uma tentativa reiterada desta estrutura racista e dos que são os seus braços, de reforçar a anticonsciência sobre a negritude, sua fé e a sua cultura. Este jogo é alinhado às formas de subjugamento que criam vida, cotidianamente, nas falas, nas ações, nas estruturas sociais e na mídia que, de modo reiterado, alimenta uma oposição entre o que é bom e o que deve ser demonizado.

 VEJA TAMBÉM
blank

Curiosamente, alguns programas de televisão, sobretudo os de cunho religioso e bem apelativos, retroalimentam uma oposição maniqueísta entre bons e maus.  Estes mecanismos que, na compreensão de Adilson Moreira, em Racismo recreativo, podem se encaixar num modelo de “microinsulto”. Ele, o microinsulto acontece como forma mascarada de reprodução de violência, posto que a realização direta pode ser rapidamente denunciada. O microinsulto, então, pode assumir forma de “mensagens  ou representações culturais derrogatórias, quando símbolos ou ritos sinalizam desprezo por membros de grupos minoritários.”

Nesta lógica de dissimulação, os “maus”, são apagados de realidade, pois são ditos por valores que não são os seus e, por sua vez, distorcem sem nenhum critério as suas bases, princípios e valores. Ao dize-los de forma mentirosa, essa lente desonesta, mascara o fato de que no Candomblé, por exemplo, se partilha do culto ancestral, que a cosmovisão de pertença à natureza intensifica uma relação de responsabilidade e que o sagrado, os ritos e os fundamentos transmitidos pelos mais velhos valorizam oralidade e, em consequência da escuta — num mundo tão assolado pela fala constante e pulverizada. Há também o apagamento da dimensão comunitária inerente às expressões do Candomblé. Ela, pela reafirmação da dimensão de pertença, na contramão do individualismo, marca da realidade contemporânea, que nos mantém atomizados e incapazes de perceber o quanto somos capazes de violentar o outro.

O racismo religioso, isto é, o mecanismo que deslegitima o sagrado que pulsa das religiões de matrizes africanas, é perverso e dissimulado Perverso porque mantém uma organização pautada na exceção, ao considerar que negritude, sacralidade e espiritualidade ancestral, devam ser aniquiladas, por se tratar de uma degradação da visão hegemônica e normativa de espiritualidade. É dissimulada, pois se germina das raízes alastradas nas consciências políticas, sociais e morais. O seu heroísmo, nesta direção, é fracassado por reforçar uma visão de mundo e de existência unilateral, desumana e desumanizante.