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Corpo e Cultura: campo de operação do Racismo Religioso

Corpo e Cultura: campo de operação do Racismo Religioso

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Corpo é questão de escala.

É sabido que tudo quanto possui matéria constitui corpo. Seja o corpo subatômico até as maiores grandezas, como exemplo dos corpos celestes. O conceito tem sido explorado e teorizado nas mais diversas áreas de conhecimento.

Logo, ouso dizer que “corpo” é sujeito universal e campo de produção de alteridade.

Eduardo Oliveira, em Filosofia da Ancestralidade: Corpo e Mito na Filosofia da Educação Brasileira, defende que a Filosofia deve se dar por meio do corpo, valorizando a dimensão imanente e empírica desse sujeito, o retirando da posição passiva de mero objeto de estudo e possibilitando que assuma a condição de encruzilhada, território de possibilidade e pluriversalidade de ser e estar.

O autor vai dizer ainda que o corpo é território da cultura, e  cultura se configura corpo imaterial que se movimenta na materialidade e é movimentada pela mesma, logo o corpo é metáfora da cultura.

Isto posto, chamo a atenção para as seguintes questões: corpo é território e não há território isento de corpo; se a cultura (valores éticos, estéticos, poéticos) como defende Luiz Rufino em Pedagogia das Encruzilhadas, se manifesta no corpo e é movimentada por ele, logo o corpo é também, o campo de atuação da necropolítica em âmbito subjetivo e material.

Photo credit: Luciano Paiva2010 on Visualhunt / CC BY-NC-ND

Por intermédio da cultura se estabelece normas para definir o corpo-sujeito que se projeta enquanto padrão, leia-se cristão, branco, hétero, europeu em contexto brasileiro; em consequência os corpos racializados se vêem alvo de ataques nos processos de construção ontológica individual e coletiva.

Retomando a ideia de corpo enquanto materialidade da escala, falo do e pelo  corpo-coletivo das Comunidades Tradicionais de Terreiro – CTTro, termo desenvolvido pelo Babalorixá e Professor Sidnei Nogueira no livro Intolerância Religiosa; uma vez que a Egbé (sociedade, comunidade) é metáfora espacial onde se reterritorializa a África, em diálogo com Muniz Sodré; configurando-se enquanto território, berço civilizatório, núcleo identitário e afirmativo de traços culturais, que se constitui corpo-ancestral lido enquanto “outro” a fim de afirmar a operação da colonialidade do poder, conceito trabalhado por Aníbal Quijano.

Portanto, a autonomia de se constituir sujeito em decorrência da ancestralidade, haja vista que a mesma não é corpo estático mas dinâmico na reinvenção de mundos, invoco aqui a figura de Exú como divindade-metáfora que se expressa nas Comunidades Tradicionais de Terreiro – CTTros, valendo-se de uma cosmovisão anamartésica, sou seja, isenta de pecados; afere risco à atuação do sistema colonial quando considera-se que a política do medo intermediada pela culpa cristã, se propõe enquanto ferramenta de operação do sistema escravocrata.

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Daí se possibilita compreender a atuação do racismo religioso operacionalizado pelas institucionalidades e seus agentes, contra tais territórios fundamentalmente negros.

Tais ataques operam tanto na dimensão espacial dos locais de fé espiritualistas, como exemplo dos casos de depredação de terreiros de candomblé em que os invasores vandalizam imagens das divindades, quebram assentamentos dos filhos de santo, entre outros abusos; quanto na agressão dos fiéis que carregam consigo signos que os identifiquem com a religião, como foi o caso publicizado em 2015, em que uma garota de 11 anos de idade foi atingida na cabeça por uma pedra atirada por dois homens, em que a motivação foi única e exclusivamente por estar vestida com roupas características de religiões afrobrasileiras.

A dimensão do racismo religioso extrapola as características fenotípicas do indivíduo, ou seja, mesmo que compreendido enquanto pessoa branca, o mesmo sofrerá com a operação do jugo racista, pois neste âmbito o que predominará será a leitura que se faz da identidade coletiva, que se caracteriza por um corpo-coletivo racializado, demarcado na origem ancestral enraizada no corpo-chão de Áfricas, irrigada desde sempre pelo corpo-água das grandes senhoras.

Em conclusão, como bem disse Mãe Stella de Oxóssi no livro Meu tempo é Agora, a religião está inserida na cultura, mas não é simplesmente cultura. Portanto se faz mister que a sociedade brasileira assuma uma postura ética e responsiva para a reparação histórica que tanto carecemos, encarando de frente todos os condicionantes estruturais e estruturantes que fundamentam o projeto de nação racista e contrário à vida que se apresenta, e se utiliza da cultura, tão vilipendiada pelas incursões eurocristãs, com o objetivo do controle dos corpos em múltiplas escalas, investindo na morte desse corpo-povo rico em cultura e fé, mas que encontra-se regido pela sistemática da precarização da vida e supressão de existências plurais.