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Política como religião: algumas considerações

Política como religião: algumas considerações

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Os pais fundadores da sociologia atestaram cada um à sua maneira que na modernidade, religião e política se separariam. Seria como se na política moderna ocorresse uma conquista progressiva da autonomia do campo político em relação à religião, como observa a socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger. A distinção dos campos seria também funcional, como se a religião dissesse respeito a relação com o sagrado e, de um modo geral, a tudo que se relaciona com a relação do humano com os poderes sobrenaturais. Enquanto a política cuidaria da organização da sociedade, a regulação do poder na sociedade e, de maneira geral, tudo o que se relaciona com as relações dos homens entre si.

Contrariando uma “previsão” dos pais fundadores da sociologia, as experiências, principalmente nos campos político e religioso do Brasil, requerem uma atenção especial. Houve, sim, um tempo em que a privatização da religião deu lugar para que ela perdesse sua capacidade de mobilização coletiva, principalmente sua capacidade utópica de cristalizar a aspiração à mudança social na forma de esperança do Reino. Alguns falavam de uma religião privatizada, individualizada e introspectiva. Por outro lado, uma grande parte das apostas sociais, expressas implicitamente na forma de religião, passaram a ser explicadas na modernidade pela racionalização da política, como diz Hervieu-Léger. Se nas sociedades tradicionais era invocado em termos religiosos outro mundo fundado na justiça e na igualdade, no “celeste porvir”, num ato de protesto contra o seu mundo e suas injustiças, os homens modernos passam, em princípio, expressar de forma diretamente política suas demandas por uma vida diferente e melhor. Essa correlação entre religião e política aparece, no entanto, não mais como um fenômeno polarizado, e sim como complementares pelas “afinidades eletivas” que existem entre eles. Para o antropólogo Joanildo Burity, “da politização do catolicismo e do protestantismo histórico latino-americanos nos anos 70 e 80 ao crescimento vertiginoso dos pentecostais e carismáticos nos anos 90, tudo aponta para uma configuração do religioso que opera segundo uma lógica de deslocamento de fronteiras e ressignificação ou redescrição de práticas”.

Um novo cenário se descortinou no Brasil, não como revanche do sagrado, mas como um retorno da “religião à esfera pública, uma penetração ou reabertura dos espaços públicos – institucionalizados ou não – à ação organizada de grupos e organizações religiosas, e não tanto um reavivamento da adesão religiosa, que teria quase desaparecido e regressaria à esfera da cultura”, afirma Burity. O que podemos observar com isso é que se a política é interessante para religião em termos de alcance dos seus valores, a religião é importante para política afim de se legitimar como um meio para se alcançar a confiança de eleitores que já não confiam tanto na política em si. Recentemente foi divulgada uma pesquisa sobre o perfil dos candidatos nestas eleições. Ao menos 521 candidatos utilizam títulos religiosos no nome de urna, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Segundo o TSE, o nome de urna pode ser um “prenome, sobrenome, cognome, nome abreviado, apelido ou nome pelo qual o candidato é mais conhecido” e deve ter no máximo 30 caracteres. Além disso, ele não pode deixar dúvida sobre a identidade do candidato nem atentar contra o pudor, ser ridículo ou irreverente. Dos títulos que mais aparecem são os de pastor/pastora e irmão/irmã. Títulos estes que mais se aproximam do universo evangélico. A impressão é de que os (as) candidatos (as) veem na política uma extensão das suas igrejas, um campo a ser alcançado pelos valores religiosos que acreditam, desconsiderando a diversidade presente na sociedade. Claro, para isso instrumentalizam o poder “secular” a fim de atingir os objetivos que não são só seus, mas compartilhados pela denominação a que pertencem e pelos líderes a que estão sujeitos.

O que se observa com tudo isso é que muitos desses candidatos se valem da religião como meio para seus fins eleitorais. Um projeto maquiavélico, porém, político. Todavia, quem mais parece perder com isso é a política no seu caráter dialógico, onde o bem comum, a diversidade e a pluralidade são as marcas para consolidação de um regime democrático.

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Referências

BURITY, Joanildo. Religião e política na fronteira: desinstitucionalização e deslocamento numa relação historicamente polêmica. Revista de Estudos da Religião: Rever. São Paulo: PUC-São Paulo, n. 4, p. 27-45, 2001. Disponível em: www.pucsp.br.
Hervieu-Léger, Danièle.”Croire en modernité: au-delá de Ia problématique des champs religieux et politique. In: PATRICK, Michel (dir.). Religion et démocratie-r- Noveaux en jeux, nouvelles approaches. Paris, Albin Michel, 1997.
Lucas Gelape e Rafaela Putini. Mais de 500 candidatos usam títulos religiosos no nome de urna. Disponível em: g1.globo.com.