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Necropolitica como “narrativa religiosa”

Necropolitica como “narrativa religiosa”

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Ao nos aproximarmos das compreensões do filósofo camaronês Achille Mbembe, enfrentamos uma relação que, a princípio, pode soar estranha, mas que, se estivermos atentos, descreve a realidade e os fenômenos que nos cercam.  Na perspectiva do filósofo, há uma composição da realidade social que, de modo bastante agudo, articula quem merece viver e quem não merece. Nota-se que, por detrás dessa estrutura aparentemente simples se esconde uma realidade consideravelmente violenta e perversa.

Ao dizer que uma existência merece ou não viver, empreendemos um processo de força que domina, marginaliza e altera nossas disposições em relação à morte do outro. Nesse contexto, a realidade se articula em uma oposição bastante conhecida: regra x exceção. Logo, o que escapa à regra deve ser exterminado, posto que manifesta, de modo latente, a diferença. Não raro, os marcadores de diferença causam ruídos naqueles que se enxergam como sujeitos legítimos. Essa composição da realidade designa, neste sujeito que se percebe inviolável, bases normativas do direito de matar.

É possível perceber que, neste contexto, a diferença é aparelhada num discurso de poder que se modula numa política da morte. Este sujeito que se percebe universal e impenetrável cria uma (falsa) noção de soberania. Esta, por sua vez, está acompanhada de um “direito” agudo sobre a morte do outro. Devemos, neste sentido, nos perguntar se o cenário religioso, no Brasil, não está atormentado por essa compreensão necropolítica.

Tomemos como exemplo o discurso que abarcou a morte de Mãe Estela de Oxóssi, aos 93 anos de idade, na Bahia, uma das mais importantes sacerdotisas do Candomblé no Brasil. Ao ver, nas redes sociais, pessoas comemorando sua morte, fomos acometidos por esta relação de imposição soberana em relação a morte do outro.  O enaltecimento de sua morte como um castigo nos causou mais impacto, posto que esta leitura se intensificou entre grupos de pessoas que passam à margem do Candomblé, seus de seus princípios e de sua cosmovisão. Ora, estas denuncias e julgamentos vieram de um profundo desconhecimento da fé de Mãe e Stella e de sua trajetória. Assim, identificamos que a banalização do outro reforça esta lógica violenta.

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Aqui, nós voltamos àquela compreensão da constituição de um sujeito que supostamente legítimo, determina as modalidades de existência a partir de sua própria realidade. A trivialização da vida e, na mesma proporção da morte e do luto, se articula nesta lógica da necropolítica que, no Brasil, se traveste de discurso religioso. Ao suprimir a vida do outro, em suas múltiplas nuances, este sujeito que intensifica a força e o poder enfraquece a existência da diferença, em nome de uma narrativa religiosa supostamente universalizada e absoluta.

Esta pretensão escapa ao que entendemos das dimensões religiosas que, de modo inegociável, se alinham à dignidade humana e a garantia da existência do outro, na modalidade de um diálogo profundo, ativo e orgânico. Todas as tentativas de subverter este exercício do encontro com a diferença é, para nós, inscrições que tentam tornar a morte do outro um processo necessário e vulgarizado, quando não o é. A colonização da diferença demarca os estatutos deste tipo de poder. Nós, ao contrário, pensamos em dinamitar estes processos a partir da manifestação das diferenças que passam à margem deste desejo violento de controle e supressão do outro.