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Jesus: o “legitimador” da política brasileira

Jesus: o “legitimador” da política brasileira

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É “chover no molhado” dizer que a identidade de Jesus nos evangelhos trata-se de uma construção teológica por diferentes comunidades. Além disso, os textos não canônicos e pseudepígrafos ajudaram a compor a fé dos primeiros cristãos e até mesmo foram fontes para os canônicos. A figura de Jesus é discutida com diferentes ferramentas teóricas, sejam elas do campo da própria teologia, da história, da filosofia, da sociologia e por aí vai.

Também não é nenhuma novidade dizer que o personagem Jesus é utilizado para discursos políticos dos mais variados. Na verdade, quem principia isso são os próprios evangelhos. O gênero evangelho é uma forma de criar, teologicamente, aspectos sobre Jesus e oferecer à comunidade uma maneira de se portar com seus pares e na sociedade cuja relação política e religião é inseparável. Dar-lhes-ei um exemplo. No evangelho de Marcos [a partir do cap. 11], por exemplo, o(s) autor(es) entende(m) que a cidade de Jerusalém é o centro da religiosidade e do poder entre os judeus, o lugar em que Deus manifestaria seu poder e autoridade, por onde os grandes feitos divinos seriam revelados. Pois bem, neste evangelho não existe uma só narrativa sobre milagres de Jesus em Jerusalém. E por quê? Eis uma crítica evangélica: Deus, em Cristo, surge na periferia, no “não-lugar”, com a finalidade de amar os inamáveis, tocar os intocáveis, convidar os desprezados tanto pela religião quanto pelo Estado. Jerusalém (o que representa em termos político-religiosos) é criticada pelo evangelista ao montar a trajetória de Jesus.

Ao entrar em Jerusalém, Jesus passaria ali 3 dias. Durante esse período, é possível reconhecer os principais adversários de Jesus: chefes dos sacerdotes, escribas, anciãos (Mc 11, 27-33); vinhateiros (donos de terras; Mc 12, 1-12); fariseus e herodianos (que eram adversários entre si, mas que se uniram contra Jesus; Mc 12, 13-17); saduceus (Mc 12, 18-27); escribas (Mc 12, 28-40). São pessoas dentro desses grupos que têm dois pontos a serem considerados: a tradição religiosa e o acúmulo de bens.

Em relação à tradição religiosa, a autoridade. Com que autoridade Jesus fala contra a centralidade do poder na cidade de Jerusalém e do Templo? Porque a autoridade está baseada na tradição desde Abraão e passa, sim, pelo sanguinário Davi (tornado programaticamente apenas um poeta adorador nos livros de Crônicas). Jesus não é “filho de Davi” no que se refere a seguir os mesmos passos e realizar a função messiânica de assentar-se no trono e decapitar líderes do governo romano. O título “filho de Davi” soa muito mal aos ouvidos do Jesus de Marcos.

Em relação ao acúmulo de bens, outros dois pontos: o habitus patriarcal judaico (modelo macho alfa estilo viking – não é uma hipérbole!) e a reprodução da imagem do César. “Dar a César o que é de César”… pagar o tributo era reconhecer César como divino. Mas a proposta do Cristo é apontar o César como um personagem que acumula. Portanto, pagar o tributo é não acumular tal como César, logo, não ter a imagem de César em si, mas sim, de Deus. Além disso, os vinhateiros homicidas que querem mais e mais (a parábola contada é uma crítica aos líderes que deveriam cuidar das ovelhas de Israel, mas acabam matando os profetas e o próprio filho do dono da terra, que é Jesus).

Está posta a mesa sobre os adversários de Jesus no evangelho de Marcos. No “mundo bíblico”, onde a religião é a fonte legitimadora do comportamento social, o embate com o Estado também é uma batalha entre deuses. Não se trata meramente de uma questão ética. É divindade contra divindade. Óbvio, heuristicamente trata-se de uma questão política. Deus fala o que o ser humano falar – em minha leitura feuerbachiana.

Imagem de Alex Yomare do Pixabay

A releitura dos textos evangélicos, que já são propostas de leituras sobre Jesus, num ambiente democrático, laico, plural, como o Brasil, tem demonstrado uma rinha infantilizada, onde, de um lado está o Jesus com sua espada usado por atores religiosos e políticos de direita, e por outro, o Jesus com o pão pregado por religiosos e políticos de esquerda. Estou sendo bem raso em minha classificação, mas em todo caso, não escapa muito a análise. Daí, Jesus, tal como no primeiro século, continua sendo utilizado para demarcação de território político. Isso é legítimo? Claro que é. Mas há que se esclarecer: é uma guerra inútil colocar Jesus contra Jesus. Essa tão falada disputa de narrativas é demasiadamente uma forma de engrossar o discurso religioso na esfera política.

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Usar as narrativas de Jesus para criar uma utopia é totalmente legítima, quero reafirmar isso. O que está em jogo é apenas se o sujeito religioso terá coragem em assumir que a Constituição tem sido muito menos acessada do que a energia gasta para se defender a face de um Jesus que requer mudanças na estrutura social.

Mais uma vez: a fé é legítima. Usar Jesus é legítimo. Tudo é possível no Brasil.

Resta perguntar aos religiosos de esquerda (e sou alguém de tradição protestante e considero-me de esquerda – embora tal classificação não faça tanto sentido mais para mim) se sem Jesus teriam algum outro tipo de solidez, de conteúdo? É isso que questiono: usar Jesus para acentuar e legitimar o discurso sobre direitos humanos, o respeito à diversidade, a igualdade entre gêneros etc. enquanto o outro lado também se utiliza da fé em Jesus para combater exatamente essas pautas. É divindade contra divindade ou é um querendo aniquilar o Jesus do outro?! É preciso admitir (e é justamente aqui que o apedrejamento virá sobre este que vos escreve, porque citarão movimentos sociais criados por religiosos progressistas dos mais diversos): o uso de Jesus no Brasil, em termos amplos, é um ímã para atrair tão somente a massa, não para gerar autonomia no indivíduo. Com isso, também é preciso admitir: a política brasileira parece precisar sacralizar determinados indivíduos para santificar o seu espaço e angariar cada vez mais adeptos (votos), mas se esqueceu que a religião é que inventou os piores demônios.