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Deficiência, fé e emancipação política

Deficiência, fé e emancipação política

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São inúmeras as possibilidades de abordagem quando o tema é religião e deficiência. Especialmente em nosso caso: duas irmãs, uma surda e uma ouvinte, com imersões distintas nas vivências da fé, mas com pontos de vista semelhantes que resultaram na reflexão proposta aqui. Nossa discussão passa por duas perspectivas que a princípio podem parecer opostas, mas que, em nosso argumento, na verdade se complementam. De um lado, discutimos a influência da religião na concepção social e histórica da deficiência e do Ser Surdo e de outro indagamos se essa perspectiva pode propiciar uma vivência da religiosidade que favoreça a autonomia e a emancipação política dessas pessoas. Utilizaremos o termo deficiência, mas temos ciência de que há distinção entre as pessoas com deficiência e as pessoas surdas, sendo o segundo grupo o daqueles que utilizam a Língua de Sinais e que se consideram parte de uma diferença linguística.

Os estudos da deficiência (disability studies) indicam quatro principais modelos de deficiência: religiosa, médica, social e interacionista. Acrescentaremos em nossa discussão o modelo cultural oriundo dos Estudos Surdos (Deaf Studies). Esses modelos estão diretamente articulados à história social da deficiência e dos surdos. Vamos nos ater, em particular, à perspectiva religiosa, que em algumas culturas, ainda hoje, possui uma dimensão mística da deficiência, que diviniza ou demoniza aqueles com qualquer tipo de diferença física ou mental. O cristianismo rompeu com as práticas de sacrifício e eliminação que muitas vezes eram realizadas em função da dificuldade de deslocamento ou sobrevivência de determinados povos ou por não atender o ideal estético da época, especialmente no período helênico, iniciado 300 anos a.C.

A partir do cristianismo essas pessoas passam a ser consideradas dignas de viver por serem Filhas de Deus. É popular a figura do Corcunda de Notre Dame, personagem do escritor francês Victor Hugo. Quasímodo foi abandonado pela família e criado escondido nas torres da catedral. Abade l’Épée, um religioso francês, foi um dos primeiros a retirar os surdos das ruas de Paris e a utilizar os seus gestos na educação e catequização. Outro exemplo é o surgimento de instituições beneficentes que abrigavam essas pessoas perante à ausência de políticas de Estado. A perspectiva religiosa, tanto baseada nas culturas pré-cristãs quanto a partir do cristianismo entende que a deficiência é uma manifestação da vontade divina. A eliminação, a segregação ou a caridade são ações baseadas nessa concepção, que ainda hoje têm forte impacto em nossa sociedade.

Outros modelos de deficiência foram desenvolvidos, mas essa visão religiosa ainda compartilha espaço no imaginário social e tensiona esses modelos. A concepção médica localiza a deficiência no corpo, como um desvio da normalidade. Já a perspectiva social define a deficiência como uma questão da sociedade que não está preparada e que, portanto, dá origem à deficiência. O modelo cultural, utilizado particularmente no caso dos surdos, considera o Ser Surdo uma diferença linguística e cultural e não uma deficiência. Por fim, o modelo interacionista considera aspectos das duas primeiras concepções. A deficiência não está exclusivamente no corpo e nem no ambiente, mas na relação entre ambos.

A perspectiva religiosa se localiza numa posição interessante quando consideramos os tensionamentos existentes entre as concepções, pois perpassa todas as outras. Os modelos médico, social, cultural e interacionista convivem com a visão religiosa especialmente no aspecto da caridade e da transcendência, características importantes para boa parte das religiões. Os desígnios divinos são considerados responsáveis pela cura ou reabilitação, ou pelo insucesso delas, como uma forma de provação ou destino. A caridade pode ser considerada um meio importante para que a sociedade elimine as barreiras físicas e atitudinais e aceitem as diferenças culturais. Esses e outros exemplos demonstram que, mesmo hoje, a visão religiosa da deficiência incide diretamente no modo como a definimos e lidamos com ela.

É nesse ponto que indagamos se a influência da perspectiva religiosa no modo como entendemos a deficiência pode propiciar uma vivência da religiosidade que favoreça a autonomia e a emancipação política de surdos e pessoas com deficiência. Em outras palavras, é possível que essas pessoas vivenciem a sua fé a partir de crenças que as definam como resultado de castigo divino ou provação humana, como parte de uma missão divina na terra ou como passíveis de cura, milagre ou caridade?

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Atualmente, as perspectivas da deficiência defendidas pelos movimentos sociais são aquelas capazes de considerar as pessoas a partir da ideia de justiça social, na qual as diferenças são respeitadas ao mesmo tempo em que há luta pela equidade. Tanto o modelo social, quanto o cultural e interacionista apostam numa concepção de deficiência atenta para as barreiras sociais agravadas pela falta de políticas públicas de acessibilidade e inclusão. Para o modelo social, quanto maior a barreira maior a deficiência. A deficiência é um tipo de desigualdade imposta pelas estruturas sociais. Para o modelo cultural, é necessário que as barreiras linguísticas sejam removidas. Já o modelo interacionista considera que, além das barreiras sociais, é importante considerar as relações que os sujeitos estabelecem com o meio bem como as suas particularidades. Aqui, a deficiência é considerada uma situação. Ambos colocam as pessoas com deficiência na condição de sujeitos e cidadãos.

Desse modo, defendemos que a emancipação política das pessoas com deficiência é condição central para a diminuição das desigualdades e opressões que vivenciam em sociedade. Mas como apartar a vivência da religiosidade da posição de autonomia e emancipação que essas pessoas buscam? Independentemente das crenças individuais, a nossa defesa é de que as vivências de fé sejam capazes de conviver com as concepções de deficiência e de surdez que priorizam a autonomia e a visão política dessas pessoas como sujeitos de direitos. A ideia de provação ou castigo divino pode dar lugar a práticas de fé capazes de construir subjetividades ancoradas na ideia de respeito, cidadania e igualdade, ao invés de incapacidade, pena ou dó. A caridade pode coexistir com a garantia de direitos. A fé não está dissociada da justiça social.