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Oração para tempos de pandemia

Oração para tempos de pandemia

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Aqui o Cientista da Religião está compartilhando com o leitor da Senso sua perspectiva teológica.

No dia 26 de abril de 2020, a pedido do Pastor Joel Zefferino, compartilhei algumas reflexões com a Igreja Batista Nazareth de Salvador, Bahia, em seu culto dominical, agora realizado de modo virtual através das redes sociais. Aceitei o convite pelo carinho e respeito que tenho por essa igreja e sua trajetória e porque acredito que estamos juntos e juntas em comunhão, que um mesmo Espírito nos acompanha e que uma mesma amorosidade nos envolve. Essa comunhão, esse Espírito e essa amorosidade se manifestam no nosso tesão pela vida, no nosso tesão por estar em comunidade e no nosso tesão por construir um mundo de paz com justiça para todas as pessoas a partir dos nossos cotidianos e das grandes lutas que temos diante de nós.

Diante do desafio de refletir sobre a atual conjuntura eu me reportei imediatamente à recomendação das autoridades em saúde sobre o uso de máscaras faciais. Pela minha experiência pessoal, essa máscara, nesse momento, tem representado pelo menos duas coisas: por um lado, o cuidado com nós mesmos e nós mesmas e o cuidado com as outras pessoas; e, por outro lado, a nossa impossibilidade de estar juntos e juntas fisicamente, o nosso desconforto e angústia diante de tudo que está acontecendo no nosso país e no mundo e a nossa impossibilidade de falar muitas coisas que estão presas na nossa garganta. A máscara, de uso obrigatório para transitar em locais públicos em muitas cidades, é uma forma de proteção e cuidado, mas também pode representar a nossa dificuldade ou impossibilidade de nos comunicarmos, de estabelecer laços e redes de apoio e solidariedade e de nos articularmos num movimento que resista às forças de morte que parecem dominar e construa alternativas viáveis para o futuro.

Eu, nesse momento, me sinto assim: dividido entre o uso da máscara como forma de proteção e como impedimento de falar. E, num exercício de tirar a máscara, esse texto busca dar voz a angústias e medos comuns e encontrar formas de confortar e seguir em frente. Mas entendo que eu só posso fazer isso de uma forma: em oração. Não tenho grandes teorias, não tenho grandes ensinamentos, não tenho coisas ousadas ou chocantes para dizer. Posso apenas orar e, nessa oração, imaginar formas de agir que nos impeçam de cair no desespero total e nos impulsionem para a superação dos momentos que estamos vivendo. Minha oração, nesse momento, é o Salmo 23, tanto o texto bíblico quanto a sua interpretação pelo ilustrador Tim Ladwig em Pslam Twenty-three (veja vídeo com as ilustrações em

O Senhor é o meu pastor: nada me faltará.

Ele me faz repousar em pastos verdejantes.

Leva-me para junto das águas de descanso;

Refrigera-me a alma.

Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome.

Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte,

não temerei mal nenhum,

porque tu estás comigo:

a tua vara e o teu cajado me consolam.

Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários,

Unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda.

Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida;

e habitarei na casa do Senhor para todo o sempre.

Eu não pretendo fazer uma análise ou um estudo exegético ou mesmo hermenêutico sobre esse Salmo, embora eu tenha acompanhado nas últimas semanas os podcasts dos “Salmos de Quarentena” produzidos por Nancy Cardoso. Também porque eu acho que a interpretação do ilustrador Tim Ladwig fala por si só e permite que nos conectemos com um sentido muito profundo desse Salmo. Mas, ainda em oração, gostaria de compartilhar com algumas reflexões.

Eu ganhei esse livro de Tim Ladwig de presente em 1997, quando eu estava no interior dos Estados Unidos num período de intercâmbio de estudos e me preparava para ir morar em um outro estado e em uma cidade completamente diferente do lugar onde eu estava. O livro retratava, naquele momento, uma realidade que eu ainda viria a conhecer e que marcaria profundamente a minha trajetória.

A partir de ilustrações que refletem o cotidiano de crianças de Newark, New Jersey, EUA – a quem o livro é dedicado – o autor propõe uma releitura do Salmo 23. Todas as personagens desse livro são negras, algo incomum em ilustrações para textos bíblicos, não por conta dos contextos aos quais se referem os próprios textos bíblicos, mas por conta do processo de branqueamento da Bíblia numa perspectiva eurocêntrica (veja Peter Nash – Relendo raça, Bíblia e religião).

LADWIG, Tim. Psalm twenty-three. New York: African American Family Press, 1993.

Eu vivi nessa cidade por nove meses, me dividindo entre um bairro afro americano (onde eu morava e trabalhava) e um bairro latino (onde eu também trabalhava). A realidade retratada no livro se tornou familiar para mim e toda vez que eu o revisito eu sinto que poderia dar nomes a essas personagens, eu posso sentir o cheiro, ouvir os sons e reviver momentos que ali experimentei e vivi. Através dessas cenas do cotidiano, o ilustrador dá vida ao Salmo e faz a sua oração em forma de imagens.

O Salmo 23 é um dos textos mais conhecidos da Bíblia. Pessoalmente, há coisas que me incomodam nele, como, por exemplo, o uso de Senhor (que me remete a todas as formas de imperialismo e abuso de poder, particularmente aqueles vivenciados no Brasil através da escravização de pessoas e povos), o uso de Pastor (que, longe da imagem da figura muitas vezes retratada de forma idílica e desconectada do próprio ofício de pastorear, passa cada vez mais a ser associado a mercadores da fé, lideranças pseudo-religiosas que manipulam em benefício próprio) e mesmo as piadinhas infames sobre “a vara e o cajado que consolam” (geralmente de cunho machista, heterosexista e falocêntrico). Mas, para muitas pessoas, ele tem um sentido profundo e se torna quase um mantra, também pela sua brevidade e pela sua estrutura, e funciona como um símbolo da vida e da fé que dá sentido a ela.

As primeiras coisas que me vieram à mente quando eu lembrei desse texto foram as suas partes mais angustiantes: “o vale da sombra da morte”, “o mal” e “os adversários”. A pandemia provocada pelo coronavírus e os fatos políticos que temos vivenciado nas últimas semanas, não apenas por conta da pandemia, mas principalmente por conta de um determinado projeto de poder que, cada vez mais, evidencia seu fracasso e sua perversidade, tornam esses elementos muito presentes no nosso cotidiano e na nossa vida.

A “sombra da morte” está materializada, por exemplo, nas centenas de mortes já registradas e nas previsões mais pessimistas em relação ao avanço da pandemia e da capacidade de controla-la e salvar vidas. O “mal” se materializa, por exemplo, em todas as ações que colocam valores outros (como uma suposta “economia”) acima (ou mesmo ao lado) dos valores que buscam preservar a vida (como a solidariedade, o apoio mútuo, a união para superar os desafios). “Os adversários” se materializam, por exemplo, naqueles e naquelas que negam a gravidade da situação, se propõe a expor a população aos riscos ou a abandonam à própria sorte.

É certo que esse “vale da sombra da morte” já é vivido por muitas pessoas e comunidades há muito tempo: O genocídio da população negra e pobre pelas forças do Estado, pelas indignas condições de vida ou por grupos paraestatais como as milícias; o genocídio das populações indígenas, quilombolas e camponesas na luta pela terra e pela água em nome de grandes empreendimentos promovidos por empresas baseadas na exploração e no lucro (agronegócio, hidrelétricas, mineradoras); os absurdos índices de violência contra as mulheres, os feminicídios, assassinatos e crimes LGBTIfóbicos (nós mesmos e mesmas que já estivemos na linha de frente de um outra pandemia e fomos acusados e acusadas de te-la provocado); os fundamentalismos de todos os tipos e, particularmente, os religiosos que levam à depredação de espaços de culto, ameaça, violência e morte de lideranças religiosas e à instrumentalização da religião para fins políticos e dominação das pessoas que crêem; são apenas alguns exemplos do mal que nos assombra e de como nos tornamos adversários.

Mas, talvez, as situações que estamos vivendo nas últimas semanas precisamente tenham evidenciado de maneira mais nítida essa realidade que já é vivenciada por muitas pessoas e suas comunidades há muito tempo. Elas têm evidenciado que os sistemas econômico e político com suas instituições pretensamente democráticas que organizam nossas vidas fracassaram (não sem que se tenha avisado, é preciso destacar) e não têm condições (possivelmente nunca tiveram) de garantir vida digna e justa para as pessoas e para tudo o que nos cerca nesse planeta que nos tocou viver.

O colapso e o caos na saúde, na educação e na segurança (para citar apenas algumas áreas que geram maior preocupação no momento) são (ou serão – dependendo de quão otimista, pessimista ou realista você é) a face mais dramática do colapso de todo um sistema que não se baseia na solidariedade e na preservação dos bens comuns, mas em delírios de desenvolvimento infinito, religiosamente sustentados por operações mágicas que desfilam diante de nós na forma de flutuação cambial, estado de ânimo das bolsas de valores e níveis de confiança de investidores angelicais preocupados com o bem estar daqueles que foram eleitos para a terra prometida do mundo regido pelo lucro e pelo consumo. É o capitalismo feito religião na sua face neoliberal.

Mas o texto bíblico, nossa oração e nossa fé apontam para uma outra realidade marcada por pequenas palavras e expressões. Com relação ao “vale da sombra da morte” o texto afirma “ainda que” eu ande por ele; com relação ao “mal”, afirma que “não temerei”; e com relação aos “adversários” afirma que há uma “mesa preparada”. Esse “ainda que”, esse “não temer” e essa “mesa preparada”, especialmente quando nos sentimentos como se estivéssemos passando pelo “vale da sombra da morte”, parecem distantes e difíceis de acreditar diante de todas as ameaças. Mas, ainda assim, o texto e a oração afirmam e confiam nessa capacidade de resistência e de construção de algo novo.

Mas de onde vêm essa esperança e essa certeza? O Salmo afirma que “nada me faltará”, que “repousarei em pastos verdejantes”, que “andarei junto a águas tranquilas”, que minha “alma será refrigerada”, que “serei guiado pelas veredas da justiça”, que “serei consolado”, “que terei uma mesa farta”, “que serei ungido e meu cálice transbordará”, que a “bondade e a misericórdia me seguirão” e que “habitarei a casa” para sempre. Nesse “eu” está contida a oração de toda a comunidade.

Essa é uma promessa tão grandiloquente e tão indecente que pode fazer qualquer crente duvidar. Especialmente porque não é uma promessa para um futuro distante e inatingível, mas descrita no Salmo como uma realidade presente. Já. Agora. E é difícil de crer nessa promessa quando se está experimentado o “vale da sombra da morte”, que, afinal, não está excluído, juntamente com o mal e com os adversários, da experiência de quem professa essa fé. É. Está mesmo difícil de acreditar. Mais ainda quando essa promessa vem de um campo religioso que tem se mostrado tão afeito às estruturas e sistemas de morte ao longo da história.

Muita gente coloca essa fé numa figura a quem são atribuídas essas promessas no texto: justamente o Senhor que é Pastor. A esses seres, imaginados como supremos, todo-poderosos e muito comumente identificados com um determinado tipo de homem e suas formas de expressar o que entendem por masculinidade, confiam suas vidas e inventam “vales da sombra da morte”, “males” e “adversários” que justificam o sacrifício de vidas (humanas e de toda a terra habitada) e o auto sacrifício como forma de satisfação das suas vontades mais perversas. Sufocam o milagre da vida na tentativa de ganhar o prêmio de uma salvação que nunca vem. Ao invés da graça, desgraça.

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Na mensagem desenhada por Tim Ladwig, partindo da experiência cotidiana das crianças de Newark, no entanto, uma outra compreensão emerge do Salmo. Poder-se-ia argumentar com relativa facilidade que a realidade das crianças e das comunidades retratadas pelo ilustrados é um constante “andar pelo vale da sombra da morte”. Uma análise das próprias imagens revela as forças do mal e os adversários que assombram esse vale cotidiano de morte.

E não são os possíveis gângsteres ou figuras mal-encaradas que aparecem nas ilustrações. O racismo e a desigualdade social são determinantes na situação de moradia, na estrutura familiar, nas práticas alimentares, na infraestrutura do bairro, nas opções de lazer e diversão e no acesso à educação evidenciadas nas ilustrações. Por mais que não sejam retratadas situações de profunda indignidade, a desigualdade e a injustiça estão evidentes no cotidiano apresentado pelo autor. E, ainda assim, as cenas e a narrativa criada com imagens nos confortam e nos dão esperança.

Qual é, então, o mistério e o milagre que estão contidos nessa promessa que é experimentada como realidade já agora, mesmo que em meio ao vale da sombra da morte? Em primeiro lugar, “o sujeito” que faz a promessa não é representado como aquele Senhor e Pastor de poderes sobrenaturais e compensatórios. “O sujeito” que cumpre a promessa, não é um só, mas são vários e várias. São a avó que acorda do sono, dá banho e conserta o brinquedo estragado, provavelmente contando alguma história. É o avô que prepara o café da manhã, ajuda a servir o jantar a busca na escola. É um homem sentado na praça lendo o jornal e se divertindo com a alegria das crianças, uma ajudante de escola que acolhe na entrada, uma professora e um professor que acompanham o desenvolvimento das crianças, uma agente comunitária que ajuda a atravessar a rua em segurança. É um Jesus negro que acolhe a experiência de fé e se identifica com a vida dessas pessoas.

Em segundo lugar, o cumprimento da promessa não se dá em shows espalhafatosos e pirotécnicos, mas nas relações cotidianas marcadas pelo afeto e pela amorosidade. Se dá na comida preparada e servida com carinho e cuidado, no conforto de ter onde dormir e como se vestir; se dá no acesso a uma educação que valoriza a experiência e transforma a realidade; se dá nas redes de proteção e cuidado que garantem o ir e vir com liberdade; e se dá, principalmente, em graça, na diversão e no riso espontâneos e involuntários experimentados num gramado farto, numa poça d’água, nas brincadeiras improvisadas com alguns colchões velhos e um pneu ou no simples movimento do corpo em piruetas, cânticos e danças, num banho ou no aconchego do colo no fim do dia e numa noite de sono tranquilo.

O milagre do cumprimento da promessa nos tempos bíblicos, na expêriencia das crianças de Newark e em meio a tudo o que estamos vivendo provavelmente não veio e não virá de intervenções sobrenaturais miraculosas. Se o Salmo, a leitura feita por Tim Ladwig e as muitas experiências que estamos tendo nesses dias de distanciamento e isolamento físico estiverem certas, a promessa já está se cumprindo em todos os gestos de cuidado, carinho e solidariedade nos lugares mais inesperados.

De alguma forma muitos e muitas de nós temos experimentado proteção, acompanhamento e força nesses gestos muitas vezes aparentemente simples e pequenos, mesmo em meio a momentos de angústia, medo e desespero. Mas muitas pessoas também não têm experimentado essas mesmas coisas por conta da situação de extrema vulnerabilidade em que se encontram (material, física, emocional, espiritual) ou porque as sombras da morte, os males e os adversários parecem ser mais fortes do que as forças e os gestos de esperança.

Ainda assim, acredito que sejam esses pequenos eventos e situações cotidianas que podem nos ensinar a lidar com tudo o que estamos vivendo. Não como um fim em si mesmo e como forma de acomodação ao estado de coisas que produz os verdadeiros vales da sombra da morte. Mas como um aprendizado e uma energia revolucionária capazes de nos movimentar em direção à superação dos sistemas de morte que imperam em nossas sociedades e produzir a força criativa que precisamos para inventar algo novo, algo que talvez ainda não saibamos o que é, mas algo que acende em nós esse tesão pela vida que não é só minha, mas de todas as pessoas e de tudo o que nos rodeia. Que me empurra pra fora de mim mesmo e de mim mesma, não como força aniquiladora daquilo que me é estranho ou estranha e diferente, mas como força criativa que celebra a liberdade e a diversidade como fundamentos do crer e do agir.

Muitos e muitas de nós temos dito #fiqueemcasa, siga as orientações de higiene e cuidado. Mas também sabemos que muitas pessoas não têm como cumprir essas orientações. Muitas delas não têm o privilégio de poder ficar em casa ou mesmo as condições necessárias para a higiene e o cuidado. E são essas as vidas que mais nos preocupam nesses tempos.

Eu não sei se vai passar. Eu não sei se vai ficar tudo bem. Mas eu sei que se estivermos juntos e juntas, em afeto e amorosidade, em resistência e luta, em denúncia das injustiças e anúncio de um outro mundo possível, teremos a oportunidade de reconstruir as nossas relações de maneira mais justa e solidária. Essa é minha oração!

“Axé pra quem é de Axé. Amém pra quem é de Amém. Blessed be pra quem é de Magia e Amor pra quem é do Bem” (Anamari Souza, Poema religioso).


Referências

CARDOSO, Nancy. Salmos de quarentena. Disponível em: https://anchor.fm/nancy-cardoso.

SOUZA, Anamari. Poema religioso. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ufjQGxDqB60

NASH, Peter. Relendo raça, Bíblia e religião. São Leopoldo: CEBI, 2005.

LADWIG, Tim. Psalm twenty-three. New York: African American Family Press, 1993.