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Êxtase religioso ou frenesi macabro?

Êxtase religioso ou frenesi macabro?

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Uma multididinha (um pequeno aglomerado com pretensões de multidão) aguardava ansiosamente pela visão de sua divindade. Ignorava o perigo de contagio de um vírus que circulava pelo mundo; tudo valia para estar diante do “mito”. Tão logo avistou aquele corpo se deslocando, foi tomada por uma euforia que a fez trocar, por descuido ou não, a clássica frase: “eu, sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor” por “eu, sou Bolsonaro, com muito orgulho, com muito amor”. Era isso mesmo: depois de tanto proclamar “Brasil acima de tudo”, aquela multididinha foi aos poucos convencida de que “Brasil” significa “ele”, o “mito” (pois, o que importa, mesmo, para ela é “ele”).

A aproximação daquele corpo, que um dia se entregara a ela jorrando sangue do lado (faltando, apenas, a “água” para se igualar ao outro messias), fazia com que a multididinha mudasse o refrão e passasse a gritar “mito, mito, mito”, quase como uma glossolalia, um “falar em outras línguas”, línguas que só ela, e ele, compreendia.

Entre ela e ele havia um curto espelho d’água, como a sugerir que, tal como o outro messias, ele andaria nas águas e cairia em seus braços, numa espécie de comunhão com o corpo sagrado do mito. Muitos de joelho, alguns de pé, em busca do melhor registro fotográfico.

Gritos eufóricos substituíam os sussurros de oração no templo. Nova glossolalia. Êxtase, ante a visão beatífica do fim de tarde.

“Deus é contigo”, podia se ouvir. Na verdade, o que se percebia era que “deus era ele”.

De repente, o grande gesto místico: o messias tira do bolso a materialização de seu poder miraculoso – a cloroquina! Contra tudo e contra todos, contra a Ciências, contra o saber médico, contra os infectologistas, contra a OMS, desde março o messias recomendava o seu uso. O messias levara seus seguidores, desde março, a cumprir o texto de Romanos: “esperar contra toda esperança”, pois “a fé é uma certeza do que não se vê”. Era isso o que ele ofereceria com o medicamento: “contra toda descoberta científica, eu vos ofereço um remédio sem comprovação”. Tomai-o. Crede nele. É o que eu vos digo. Tomai-o e recomendai-o. Levai-o aos confins, como outrora outros discípulos levaram a Boa-Nova. Essa é minha boa nova, disse e redisse, em atos, o líder.

Agora, ali estava ele, desta vez erguendo a promessa de cura e salvação aos seus. Eis o meu medicamento, tomai e vivei!

Bolsonaro celebra cloroquina com apoiadores – Foto: Reprodução/Redes Sociais

A multididinha, com pretensões de representar o país de mais de 200 milhões de habitantes, ajoelhou-se, rendeu graças e saiu dali disposta a, fundamentalisticamente, impor sua crença ao conjunto da nação. O que não corroborar a mensagem de salvação será declarado fake, e compor o index do século XXI. Heresia.

Antes de acabar o culto, um irmão toma a palavra para dar uma palavra de ciência, ou de profecia, ou de sabedoria.

Aleluia, dizem os liderados. Dali partiriam para suas casas, prenhes da mensagem de salvação do messias.

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Fim do conto.

Cada vez mais mostra-se grave a condução do presidente no assunto pandemia. Em breve chegaremos a dois milhões de mortos, e sua preocupação continua a ser agitar e contagiar seus seguidores, a cada dia em menor número mas com mais som na garganta.

Com o ato deste domingo, outro elemento religioso parece ter se juntado ao movimento bolsonarista: ao elevar uma caixa do medicamento cloroquina, o presidente repetiu o ato sacerdotal católico de erguer o cálice e a hóstia, símbolos do corpo e do sangue de Cristo; ou melhor, símbolo/sinal da presença de Cristo entre os seus. “Eis o meu corpo e o meu sangue”, lembra o ritual católico. “Eis o que vos recomendo”, “eis uma parte de mim”, “eis a cura”, diz Bolsonaro a seus seguidores.

Na tradição cristã, a comunhão foi a forma com a qual Jesus estabeleceu sua presença entre os seguidores: “estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo”, lê-se no Evangelho. O ato de Jair vai no mesmo sentido: com a cloroquina, permanecerá entre os seus, seja na ingestão como pretensa prevenção (o que não serviu para o próprio presidente), seja como “memória” da cura operada, seja como símbolo da força mágica de suas palavras.

Enquanto isso, nenhuma política eficaz se desenha para os contaminados pela covid. O bem público passou a ser aquilo que, macabramente, excita e põe em frenesi seus seguidores.