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Dezmandamentos: LGBTI+ e Bíblia

Dezmandamentos: LGBTI+ e Bíblia

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A relação entre as pessoas LGBTI+ e a Bíblia é complexa. Em minhas conversas sobre Teologia(s) Queer, sempre surge a pergunta: “mas, e a Bíblia?”. Geralmente, tento propor outros caminhos, apontar outros textos, criar desvios, mas a insistência na pergunta revela a importância do texto sagrado para a experiência sexual e de gênero das pessoas que não se enquadram nas “normas” da cis/heterossexualidade. Às vezes, perguntam sobre os “Textos de Terror”, aqueles textos comummente usados contra as “práticas homoafetivas”, como a conhecida narrativa de Sodoma e Gomorra (Gênesis 19) ou como os clássicos versículos da carta do apóstolo Paulo aos Romanos 1, 26-27 (“Por isso Deus os abandonou às paixões infames. Porque até as suas mulheres mudaram o uso natural, no contrário à natureza. E, semelhantemente, também os homens, deixando o uso natural da mulher, se inflamaram em sua sensualidade uns para com os outros, homens com homens, cometendo torpeza e recebendo em si mesmos a recompensa que convinha ao seu erro”). Outras vezes, perguntam sobre as possíveis “relações homoafetivas na Bíblia”, como entre Davi e Jonatas ou Rute e Noemi.

Entre “a Bíblia condena” e a reconciliação da fé cristã com a sexualidade de LGBTI+ há um longo caminho. Com o apoio de uma comunidade local, de uma rede de solidariedade, essa caminhada pode ficar menos sofrida, afinal, é no “ninguém solta a mão de ninguém” que os passos ficam mais largos. Por essas estradas eu também passei. E volta e meia me vejo ali de novo. Agora, com mais paciência, consigo perceber novas encruzilhadas, novos desvios, possíveis descaminhos. Afinal, como já afirmei em alguns lugares pelos quais também transitei, na minha impossibilidade de ler a Bíblia por acreditar que aquele era um livro de condenação, acabei achando em outros textos o que era de mais sagrado para mim.

E assim, com os pés no caminho, o sagrado no peito, e o desejo na carne, ouvi, mais uma vez, Cora Coralina falar para mim:

Aninha e Suas Pedras

 

Não te deixes destruir…

Ajuntando novas pedras

e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre.

Remove pedras e planta roseiras e faz doces. Recomeça.

Faz de tua vida mesquinha

um poema.

E viverás no coração dos jovens

e na memória das gerações que hão de vir.

Esta fonte é para uso de todos os sedentos.

Toma a tua parte.

Vem a estas páginas

e não entraves seu uso

aos que têm sede.1www.culturagenial.com

 

Esse poema-lema volta e meia me pega. Muitas vezes, queria parar ali no “faz doces” … mas, depois de lambuzada, o convite não termina. E Cora, com sua Coralina coragem, me invoca a beber e perceber que essa fonte é todes. E é por isso que resolvi me voltar para a Bíblia e compartilhar aqui nessa coluna uma séria de artigos com impressões, provocações, inquietações sobre um dos textos mais conhecidos da Bíblia, os Dez Mandamentos. Não há interesse algum em apresentar uma exegese do texto, de destrinchar o hebraico, de compreender o contexto. Pelo contrário, quero chegar diante da Bíblia com os recursos que me são mais caros – meu corpo, minha sexualidade e meu desejo.

 VEJA TAMBÉM
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Como tema, os Dez Mandamentos. Por quê? Porque é preciso desmandar! É preciso desrespeitar as ordens, desviar, passar dos limites. Os significados para “desmandamento” no dicionário só me motivaram ainda mais a seguir com esse projeto:

 

des·man·do (sinônimo de desmandamento)

sm

1 Ato ou efeito de desmandar(-se); desmandamento.

2 Infração de ordens; desobediência.

3 Exagero no tratamento; abuso, desregramento.

4 Ato de indisciplina; insubordinação, rebeldia, resistência.2michaelis.uol.com.br

 

E, já que é pra desmandar os Dez Mandamentos, por que não “dezmandar”? Projeto batizado: “Os Dezmandamentos”. Serão onze textos (sim, onze), cada qual com um dos Dez Mandamentos e um de encerramento da série. Minha intenção é colaborar com as Ciências da Religião no que diz respeito à visibilização da realidade LGBTI+ e sua relação com o cristianismo. Entretanto, mais do que isso, meu desejo é que essa série seja um recurso pastoral para tantas dessas pessoas que caminham comigo e continuam a me perguntar: “mas, e a Bíblia?”.