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Um pé de Jurema plantado na história da educação – A Escola como espaço de enfrentamento ao racismo institucional e religioso

Um pé de Jurema plantado na história da educação – A Escola como espaço de enfrentamento ao racismo institucional e religioso

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A sociedade brasileira foi edificada a partir do instituto da escravidão. A escravidão no Brasil não foi somente um modo de produção, mas também uma forma de dominação e subjugação dos indígenas e negros, no qual os indígenas tiveram suas terras invadidas, sua cultura menosprezada e milhares de vidas destruídas, e os negros foram arrancados da África e forçados a esquecer de suas origens, trabalhar de maneira subumana e sendo mortos aos milhares.

Foi a partir desta espoliação, exploração e humilhação de índios e negros que se fundou a sociedade brasileira. Para além da violência física, a partir dos trabalhos forçados e dos castigos, houve também, a violência simbólica, a qual demonizou tudo o que é de origem afro-indígena, dando origem a uma dominação a partir do racismo, que é estrutural na sociedade brasileira, pois está presente de várias formas e em várias instituições sociais.

Uma das formas de dominação das camadas populares no Brasil foi a falsa ideia da existência de democracia racial, que passou a fantasia de que todos são tratados de forma igual e, pelo esforço individual, pelo mito da meritocracia, podem ascender socialmente, desconsiderando a influência social da discriminação, do preconceito racial e das causas de desigualdades sociais. Este fato vem causando uma desmobilização e arrefecimento das massas excluídas, jogando um sentimento de culpa individual pela falta de “sucesso” na vida.

Com a utilização de vários artifícios por parte das classes dominantes, o racismo se perpetuou na sociedade até os dias atuais sendo materializado em ações do cotidiano com discriminações, preconceitos e marginalização social das pessoas que fazem parte das culturas e tradições afro-indígenas.

Dentre as instituições que reproduzem o racismo, destaco a escola, a qual não está isenta dos valores da sociedade em geral, pois ela está inserida na sociedade absorvendo todo o tipo de influência. Sendo assim, o racismo está presente na escola!

A instituição escola é um espaço de troca de saberes e conhecimentos, mas também é utilizada como instrumento reprodutor para dominação das camadas populares e de perpetuação da subjugação, discriminação e preconceito das tradições e culturas afro-indígena, induzindo, com isto, que a maior parte da população desta origem, negue a sua história reforçando o racismo.

No entanto, nessa troca de saberes e conhecimentos, a escola também pode ser um espaço de desconstrução do racismo, um local onde pode ser discutido e refletido sobre os problemas sociais sofridos pelos povos afro-indígenas, assim como, para o conhecimento da história, cultura e tradições destes povos, para que se possa construir uma sociedade mais justa e igualitária.

Um grande passo foi dado na direção dessa sociedade mais justa e igualitária, quando, no ano de 2003, foi promulgada a Lei 10.639, que versa sobre a obrigatoriedade de se trabalhar a história, cultura e tradições afro e afro-brasileira, em complemento a LDB 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Base da Educação). Posteriormente, em 2008, foi editada a Lei 11.645, que inclui a obrigatoriedade de se trabalhar também a cultura e tradições dos povos indígenas do Brasil. No estado de Pernambuco foi criada a Lei 13.298/2007, conhecida como Lei Malunguinho, a qual institui a Semana de Vivência e Prática da Cultura Afro Pernambucana.

Mesmo com todos estes dispositivos legais, as ações pedagógicas nas escolas, em especial da Rede Pública Estadual, que é o meu lugar de fala, tendem a ocorrer na maioria das vezes, por iniciativa de alguns professores e professoras que, de maneira isolada desenvolvem atividades nas escolas em que trabalham.

A falta de ações sistemáticas inseridas no sistema da educação faz com que as atividades voltadas para o conhecimento das tradições culturais e histórica afro-indígenas sejam muito prejudicadas, pois o docente que assume esta missão tem que enfrentar, muitas vezes, a oposição dos outros professores, da gestão da escola e de alguns estudantes.

É nesse cenário contraditório que, desde o ano de 2009, desenvolvo nas escolas em que tive a oportunidade de lecionar, projetos sobre a temática afro-indígena. Algumas vezes associando ao tema transversal do Meio Ambiente, pois existe uma ligação íntima entre as Religiões Afro-indígenas e os elementos da Natureza, os quais fazem parte do sagrado para estas culturas.

Dos muitos trabalhos que já desenvolvi, procuro abrir espaço para os saberes das comunidades tradicionais, sempre trazendo lideranças dos Povos Tradicionais de Terreiro, dos Povos Indígenas etc. A intenção é que os saberes tradicionais alinhado aos conhecimentos científicos possam trazer para os estudantes uma visão mais próxima possível da realidade e assim auxiliar numa leitura mais crítica sobre o problema do racismo sofrido por estes povos.

Outro instrumento pedagógico que considero pertinente e costumo utilizar são as aulas de campo, as quais servem para que os estudantes vivenciem, fora da escola, a cultura e tradições dos povos afro-indígenas. Nessa direção, junto aos discentes, já realizei visitas a Terreiros, Comunidades Quilombolas, Aldeias Indígenas etc., desenvolvendo com isto, uma educação contextualizada.

No ano de 2016, na Escola de Referência em Ensino Médio Professor Cândido Duarte, localizada no bairro de Apipucos, no Recife, surgiu a ideia de realizar a Semana do Meio Ambiente, que consistiu em realização de oficinas, palestras e debates.

No dia 09 de junho de 2016, dia em que fechava a Semana do Meio Ambiente, foi planejado o plantio de uma jurema (Mimosa hostilis), espécie de árvore natural do semi-árido do Nordeste, que faz parte do sagrado para os Povos de Terreiro que praticam a Jurema Sagrada ou Catimbó. A Jurema Sagrada é uma religião de matriz indígena e é encontrada em muitos terreiros da Região Metropolitana do Recife.

O objetivo da atividade foi refletir sobre a importância da preservação e conservação ambiental para as religiões afro-indígenas, as quais necessitam de um ambiente preservado (rios sem poluição, matas preservadas etc.) para realizarem seus cultos, porque o templo para os povos de terreiro é a natureza.

Para desenvolver este projeto contei com a parceria do Quilombo Cultural Malunguinho, que conseguiu a muda de jurema, para realizar o plantio, a partir do coordenador da instituição, historiador, juremeiro e babalorixá, Alexandre L’Omi L’Odò, o qual realizou uma palestra desmistificadora e decolonial para os estudantes.

No dia de realizar a atividade, fui surpreendido ao chegar de manhã na escola, pois a gestão escolar queria maiores explicações sobre a atividade a ser desenvolvida, a qual já havia explicado com antecedência para a direção. Mesmo assim, expliquei mais uma vez sobre o que iria ocorrer (palestra e plantio da muda de jurema). Fui muito questionado pela gestão devido o fato do evento ter sido divulgado no Diário de Pernambuco e que, por isto, haveria o temor de que aparecerem pessoas de terreiro na escola. Na visão da direção, poderia transformar a atividade pedagógica em um culto religioso.

Depois de prestar os esclarecimentos solicitados, continuei a organização do evento, porém mais uma vez, para minha surpresa, representantes da GRE Recife Norte, da “área de Direitos Humanos”, chegaram na escola para pedir mais explicações. Desta vez passei mais de uma hora sendo inquirido sobre a atividade e alertado, a todo momento, que não poderia ocorrer nenhuma manifestação com música ou balançar de maracás, instrumento utilizado no culto da Jurema Sagrada, com a justificativa de que este ato poderia fazer com que alguém incorporasse, ou seja, recebesse algum espírito, o que qualificaria a atividade como culto religiosos e estaria ferindo a laicidade da escola.

Ao terminar a cessão claramente inquisitória, fui buscar no bairro de Peixinhos, em Olinda, a muda da jurema e o palestrante Alexandre. Quando retornei para a escola a gestão escolar pediu para conversar com ele, pedindo explicações sobre o que iria acontecer naquele momento. O mesmo, conversou com a gestão e frisou que a forma que estava sendo questionado aquele momento pedagógico configurava racismo institucional e caberia trazer até a escola movimentos e instituições de defesa dos Direitos Humanos e das comunidades tradicionais de terreiro para que fosse resolvida a questão.

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Finalmente, depois de tantos atos configurados como racistas, aconteceu a atividade! Primeiro com a palestra, na qual a participação dos estudantes foi marcante com perguntas para sanar as dúvidas e curiosidades sobre a cultura, tradição e religião dos povos de terreiro das religiões afro-indígenas, este momento foi também de desabafo, inclusive com lágrimas minhas e do palestrante, expressando o quanto foi difícil chegar até ali. Em seguida ocorreu o plantio da muda, que foi um momento de muita emoção, em que todos os presentes foram tomados por um sentimento de respeito e disposição para enfrentar o racismo. Houve também, uma efetiva participação dos estudantes, que compreenderam o momento como sendo de grande importância na história de suas vidas e na construção de suas subjetividades e criticidade para enfrentamento à intolerância, preconceito e racismo religioso.

Ao juremeiro, em sua trajetória de luta e resistência, restou-lhe, mais uma vez reafirmar essa trajetória. Como se fosse a primeira vez que lhe ocorria tal situação discriminatória, o sentimento de injustiça, dor e tristeza esteve presente naquele sacerdote, que deixava transparecer, inclusive em suas lágrimas, o lamento de ter que enfrentar o preconceito e a discriminação de forma cotidiana.

Em suas palavras, era notório a necessidade de afirmar que aquele momento simbolizava muito mais que um plantio de uma árvore sagrada. Que seus ancestrais, corações e mentes de seu povo, estavam presentes lhe acompanhando e fortalecendo a caminhada pelo fim do preconceito e discriminação dos povos negros e indígenas.

Foram momentos de muita comoção, pois naquele instante estava se abrindo um espaço de diálogo com as culturas e tradições de povos que deram origem ao povo brasileiro e que, no entanto, vivem sendo discriminados, demonizados e sofrendo de maneira profunda todas as formas de racismo.

Importante destacar que o plantio da muda de jurema que ocorreu na escola foi o primeiro em uma escola pública no Brasil. Os estudantes, após elaborarem um jornal informativo na EREM, passaram ali, a chamar de forma carinhosa a árvore de “Jujú”, símbolo do respeito a diversidade cultural e religiosa do nosso país.

Todo o enfrentamento para a realização da atividade pedagógica explicita o quanto o racismo está presente nas instituições brasileiras mantendo com isto uma estrutura desigual na sociedade, na qual os que são respeitados são aqueles que possuem e dominam o capital, são brancos e pertencem ao cristianismo.

Isto mostra o quanto tem que ser feito para enfrentar o racismo na nossa sociedade. É necessário tornar sistemática as experiências de trabalhos com a temática afro-indígena, para que se possa diminuir a discriminação e o preconceito com estas culturas e tradições.

O enfrentamento do racismo não pode ficar restrito a ação isolada de professores, porque dessa forma não se consegue combater algo que é estrutural na sociedade brasileira e é perpetuador das desigualdades. É necessário incentivo, com programas e projetos que propicie aplicabilidade da lei 13.298/08 e as demais.

Contudo, vive-se na contemporaneidade brasileira um clima não favorável para a prática da educação crítica e reflexiva acerca do enfrentamento ao racismo, mas é necessário dar continuidade a luta por uma sociedade mais justa e igualitária, na qual todos e todas sejam realmente respeitados.

Plantamos uma árvore na história da educação, e esse marco, se mantém vivo e dando flores e frutos até hoje, confirmando que não devemos desistir jamais, e que é possível vencer o racismo!