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A ciência da Jurema e a Jurema na ciência: implicações éticas e políticas

A ciência da Jurema e a Jurema na ciência: implicações éticas e políticas

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 “Oh Jurema encantada que nasceu do frio chão, dai-me força e ciência como deste à Salomão”.

Foto: Pedro Stoekcli Pires

A epígrafe deste ensaio é o trecho de uma das mais antigas e tradicionais cantigas de Jurema entoadas pelos catimbós do Nordeste. A sua escolha não é à toa: aqui pretendo discutir, brevemente, a inserção da Jurema Sagrada na academia e as suas implicações éticas e políticas.

De início, não podemos ignorar que ela própria se constitui como um compêndio de saberes – a tal ciência da Jurema – dos povos indígenas, africanos e do catolicismo popular, que foram preservados ao longo dos anos nas mesas e terreiros Brasil afora. Mas há o que se discutir sobre a sua presença na “ciência do mundo”, principalmente porque tem crescido nas Universidades brasileiras o interesse nos estudos sobre as religiões de terreiro.

Em relação à Jurema, há desafios ainda maiores a vencer. Invisibilizada e sem o destaque social, político e acadêmico que o Candomblé e a Umbanda tiveram, a Jurema teve uma inserção tardia na academia, sendo frequentemente considerada apenas um culto paralelo, sem autonomia ou estatuto de religião.

Muito disso se deve a dois fatores: a ausência de intenção institucional da Jurema e o seu engajamento nas federações de Umbanda ou Candomblé, necessária para sua sobrevivência diante de um Estado racista e perseguidor, como parte do processo de legalização dos cultos afro-ameríndios nos Estados brasileiros. Aliás, utilizar a categoria “afro-ameríndia” é mais uma estratégia para conferir visibilidade e reconhecimento às contribuições indígenas para a construção das religiões de terreiro no Brasil.

Somente a partir dos anos 1970 – apesar de observações etnográficas realizadas desde o começo do século XX – é que a Jurema entra, ainda que timidamente, na pauta acadêmica, sendo um importante marco histórico a dissertação de René Vandezande, em 1975, responsável ainda por tornar Alhandra a maior referência para a religião.

Tudo isto tem, na verdade, profunda raiz política. Em tempos de “escola sem partido”, aliás, é essencial salientar como a produção de conhecimento é diretamente implicada com o poder.

Costumo analisar a Jurema sob a ótica decolonial. Com efeito, a colonização não apenas a condenou à ilegalidade, como também, a prevalência de seus valores, a colonialidade do poder e do saber foi responsável pela manutenção de um status subalterno, garantindo assim a subordinação social e a invisibilidade política e epistemológica da Jurema Sagrada.

A representação da Jurema nos discursos religiosos, médicos e jurídicos ao longo dos anos se enquadra bem ao que Fanon afirma sobre a descrição do colonizado pelo colonizador. A sua qualificação como heresia, degeneração e crime serviu para condená-la e a seus sujeitos à marginalização e ao genocídio.

Aliás, Ramon Grosfoguel é bastante pontual ao recordar que a religião foi o primeiro campo de incidência do racismo. Daí a polêmica sobre a existência ou não de alma nos povos indígenas, os pais e mães da Jurema Sagrada. Se eles e elas não professavam a fé católica, não teriam alma e, portanto, não seriam seres humanos, podendo assim ser submetidos à escravidão e ao genocídio, incluindo a destruição de seus saberes, tidos como incivilizados, devendo, assim, ser substituídos pelos valores europeus, considerados superiores, portadores da verdade e, assim, universais.

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Escrever sobre a Jurema, portanto, não é apenas produzir matéria para a academia ou interessada somente na obtenção de títulos. É preciso, como advertiu Walter Benjamin, “escovar a história a contrapelo”, construir uma ciência que faça jus à nossa realidade de sujeitos historicamente oprimidos e colonizados, de maneira a superar as amarras da colonialidade.

Por outro lado, não se pode deixar a ideia de descolonização se perder ou ser reduzida a mera palavra de ordem. Mais que um simples conceito, ela encerra uma tarefa política e ética: ouvir os oprimidos e permitir que eles possam reconstruir a própria história. A academia, assim, não pode fazer dos juremeiros sujeitos exóticos ou pretender ser a salvadora ou iluminadora dos terreiros, o que é uma postura colonizadora, aliás.

A academia pode ser um espaço de emancipação e reconhecimento da Jurema. Para isso, é preciso que descolonizemos não só a escrita, mas também a nós mesmos. Assim conseguiremos fazê-la triunfar nas mesas, nos terreiros e na política.


Referências

BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
GROSFOGUEL, Ramon. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicidios do longo século XVI. In: Revista Sociedade e Estado – Volume 31 Número 1 Janeiro/Abril 2016, pp. 25-49.
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005, pp 107-130.