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Alhandra, Acais, Memória e Patrimônio

Alhandra, Acais, Memória e Patrimônio

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Em sua História da companhia de Jesus no Brasil, Serafim Leite refere-se a uma área, por ele denominada linha interna, que, ao norte de Olinda, em 1610, era composta por diversos aldeamentos jesuíticos. Essa linha incluía, em seu extremo norte, a Aldeia de Nossa Senhora da Assunção, antigo aldeamento de Arataguy, atual Alhandra, localizada no Litoral Sul da Capitania da Paraíba. Este breve artigo versa sobre o Acais, propriedade que pertenceu aos descendentes do último regente dos indígenas ali aldeados, Inácio Gonçalves de Barros, pai da prestigiosa mestra da jurema Maria do Acais, falecida em 1937.

Com o fim dos aldeamentos na Paraíba, em 1862, as terras da antiga aldeia foram demarcadas e doadas às famílias indígenas, seguindo ordem do Imperador D. Pedro II. O Acais foi, então, doado a João Baptista Acais, como consta na Carta Topográfica da Sesmaria dos Índios de Alhandra, feita pelo engenheiro Antônio Gonçalves da Justa Araújo, em 1865. Parte das terras pertenceria, tempos depois, a José Paulo de Medeiros e Maria do Espírito Santo, conforme contrato de venda, de 1899. No início do século, como mostra um documento de dezembro de 1908 (Termo de Declaração e Descrição de Bens), o Acais teria como proprietária Maria Gonçalves de Barros (considerada a primeira Maria do Acais). Esta doaria a propriedade à sua sobrinha Maria Eugênia Gonçalves Guimarães, que se tornaria conhecida como Maria do Acais (a segunda).

Na ocasião do falecimento da tia, Maria do Acais residia no Recife, na Rua José Mariano, bairro dos Coelhos. Ao herdar a propriedade, por volta de 1910, adotaria domicílio duplo, vivendo no Acais e em sua residência na capital. Como proprietária, tornou a fazenda mais próspera, tendo construído casas e erguido a Capela São João Batista. A prestigiosa mestra, que faleceu em 1937, teve nove filhos, dentre os quais apenas Flósculo Guimarães, que teria seguido a tradição da família, permaneceu na propriedade. Seu Flósculo havia solicitado ao prefeito da capital (Alhandra figurou como distrito de João Pessoa até 1958) autorização para ser enterrado atrás da capela do Acais. Assim, em janeiro de 1959, foi ali sepultado, tendo sobre seu túmulo uma escultura em concreto de um tronco de jurema.

Flósculo era casado com a sua prima Damiana Guimarães da Silva, juremeira também renomada, com a qual teve quatro filhos. Ela, que faleceu em 1978, foi a última mestra da família.

Quase meio século após ter sido elevada à categoria de vila (o que ocorreu em 1765, no contexto do diretório pombalino), Alhandra se manteve como comunidade indígena, como evidenciam diversos documentos e relatos da época, a exemplo do registro feito por Henry Koster, que por lá passou em 1810. Trinta anos após a extinção dos aldeamentos, o que ocorrera, como mencionado, em 1862, Joffily, contrariando os dados oficiais que proclamavam o “desaparecimento dos índios”, registrou, em 1892, a predominância do que chamou de “typo indígena puro”, que na Paraíba só seria encontrado na Bahia da Traição e em Alhandra.

Apesar da importância dos indígenas em Alhandra, sobretudo da família de Maria do Acais, o passado indígena, ao longo do século XX, foi desaparecendo da memória da comunidade. Esse processo de “esquecimento”, no entanto – como sugere Paul Zumthor em relação ao papel do esquecimento nas culturas humanas –, não anula o que da memória do grupo foi esquecido. Ele “apaga”, ao mesmo tempo em que clarifica o que deixa à lembrança, transformando-o em um complexo sistema semiótico. Deste modo, a tradição da jurema em Alhandra seria parte dos “traços memoriais” indígenas daquela região, sendo assimilada e concebida por seus/suas praticantes como uma figura de “eternidade segura”.

Esse passado memorial, portanto, é representado pela jurema, fenômeno religioso, cujo nome advém da planta de igual nome, a partir da qual se produz uma bebida, também denominada jurema, ingerida durante os rituais. Para um número significativo de juremeiros/as nordestinos/as, Alhandra seria o berço dessa tradição, em razão, sobretudo, do prestígio de mestres e mestras do Acais.

O registro mais antigo que temos sobre o Acais foi feito em 1865. Ao longo do século XX, a propriedade foi descrita, direta ou indiretamente, por nomes como Gonçalves Fernandes, Roger Bastide, Arthur Ramos, Vandezande, entre outros. Era composta por uma casa principal, algumas casas de moradores, um coreto e, na parte mais alta, a Capela de São João Batista e a escultura sobre o túmulo do mestre Flósculo, mencionadas acima. Por trás da casa principal onde viveu a prestigiosa mestra, existia até pouco tempo uma das “cidades” da jurema mais antigas, santuários formados por um ou mais pés de jurema, considerados moradia dos mestres.

Com o falecimento da última proprietária, Maria das Dores (Dorinha), neta de Maria do Acais, um latifundiário aparece como o novo dono das terras. Ele manda destruir a casa, o coreto e os pés de jurema (as “cidades”) que lá existiam, criando um cenário de devastação e indignação. Restaram a capela e a escultura sobre o túmulo do mestre Flósculo – talvez por estarem localizados no lado oposto da casa, separados pela estrada.

Parte do patrimônio da jurema estava, assim, destruído, sendo ignoradas as tentativas de diálogo (por parte dos/as juremeiros/as) com o poder público, incluindo um projeto de inventário da jurema de Alhandra, com propostas de salvaguarda e preservação da propriedade do Acais, entregue à Superintendência do Iphan na Paraíba.

Para entender por que o Acais foi derrubado, é necessária uma breve reflexão sobre a concepção vigente de patrimônio cultural nacional. Esta, apesar dos avanços no debate e nas políticas públicas, ainda segue uma perspectiva colonial, predominante em todo o ocidente, na qual interesses de grupos dominantes determinam seus usos e significados. Deste modo, não é preciso muito esforço para perceber que o completo descaso com a jurema, que levou à destruição de parte significativa do seu patrimônio cultural, deve-se ao lugar que têm ocupado os povos indígenas e negros na construção do Estado nacional. Com efeito, as políticas patrimoniais ainda se mostram comprometidas com narrativas de memórias e de identidades ditas nacionais, forjadas no vínculo comum com o Estado territorial moderno, em uma perspectiva funcional. Como argumentou Catherine Walsh, a diversidade cultural, a partir de 1990, tornou-se um tema em “moda” nas políticas públicas, reformas educacionais etc. Assim, novas discursividades de reconhecimento e respeito à diversidade cultural serviriam ao propósito de incorporar a diferença e neutralizá-la, esvaziando seu significado efetivo. Seriam, portanto, estratégias de dominação e assimilação, que ofuscam e mantêm a diferença colonial, na perspectiva de uma interculturalidade “funcional”.

A jurema e os/as juremeiros/as, no entanto, que resistiram durante séculos à violência física e simbólica, continuam sua desobediência frente ao sistema-mundo moderno, que se opõe a tudo relacionado à espiritualidade e sacralidade das comunidades negras e indígenas. Com efeito, no momento em que cresce o discurso e as políticas racistas contra as minorias étnicas, naturalizando as assimetrias de poder e ameaçando direitos fundamentais, temos observado um aumento significativo do número de juremeiros e juremeiras, que se organizam, lutam por seus direitos e pela valorização do seu patrimônio.