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A intolerância religiosa é antropofágica

A intolerância religiosa é antropofágica

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Freud, ao tratar os soldados que voltavam da primeira guerra mundial, percebeu que tais soldados relatavam sonhos de cenas extremamente traumáticas, e isso levou Freud a repensar sobre o funcionamento do aparelho psíquico, pois desde A interpretação dos sonhos (1900), os sonhos sempre foram considerados pela psicanálise como realização de desejos. Como as cenas traumáticas seguiam se repetindo e provocando desprazer nos sujeitos? Será que haveria algo para além do princípio de prazer no modo de funcionamento psíquico?

Essa indagação fez com que Freud  postulasse a existência de uma das suas ideias mais fantásticas: o conceito de “pulsão de morte” (Todestrieb) formulado em 1920 em seu texto “Para além do princípio de prazer”. Algo que chama a atenção nesse conceito freudiano, que será depois o grande impulsionador para o reavivamento da psicanálise por Lacan, é que tal conceito se propõe a ser o oposto do que o seu nome denomina.

A pulsão de morte freudiana não tem absolutamente nada a ver com uma “vontade de morrer”, ou “vontade de correr perigo”; pelo contrário, tal conceito em Freud aponta para o fato de que a vida humana não é apenas biológica, mas há um excesso de vida que a transborda, que quer constantemente “mais vida”. A pulsão de morte é o nome dado à pulsão que inicia um processo de repetição, “um nome para o destino horrível de ser pego no ciclo repetitivo e interminável de perambular pela culpa e pela dor” (ZIZEK, 2006, p. 61).

Ao adentrar no mundo da linguagem, o sujeito é marcado por uma falta, por uma perda de um objeto que apenas ilusoriamente lhe pertenceu, mas que por achar que perdeu, correrá incessantemente atrás de tal objeto, pagando com isso um preço de um excesso de vida que dificulta a vida cotidiana de diversas formas. Essa perda do que o sujeito tem (ilusoriamente) institui a pulsão de morte, que produz prazer pela repetição da perda original. Nesse sentido, o conceito freudiano de pulsão de morte se torna central para entender muito da relação do homem com o mundo.

A partir da pressuposição da noção de pulsão de morte, Freud irá reconfigurar a forma como a psicanálise entende o funcionamento do aparelho psíquico. Se antes da pulsão de morte a vida libidinal do sujeito se pautava pela diferenciação entre “pulsões de autoconservação” e “pulsões sexuais”, depois da teoria do narcisismo (1914), tal divisão não mais se sustenta, pois o que Freud percebe é que o próprio eu pode ser objeto da pulsão, de forma que cabe agora caracterizar as duas pulsões (de autoconservação e sexual): “pulsão de vida” — responsável por querer agregar cada vez mais as coisas ao redor de si —; a pulsão de morte  — responsável pela desagregação, pela busca incessante de retornar ao estado em que ilusoriamente detinha o objeto perdido.

Ao falarmos um pouco sobre a pulsão de morte em Freud, percebemos como tal conceito é imprescindível para entendermos as diversas relações que nos rodeiam no mundo contemporâneo, inclusive as estruturas de intolerância. É fato já conhecido de todos que a nossa época é a época em que os produtos são oferecidos como solução para a angústia que nos cerca, e cada novo produto atesta novamente que o objeto perdido não pode ser encontrado, de forma que a repetição da pulsão de morte se manifesta no próprio discurso do modo de produção capitalista criando um curto-circuito.

O sujeito contemporâneo se vê envolto em um discurso que promete “mais vida” por meio de satisfações diversas, mas sempre colocando para funcionar tal dinâmica da pulsão de morte. Não estaria aqui a dinâmica da desvalorização da vida em sua estrutura mais pura? A hipermodernidade ausente de referências capazes de impor limites aos sujeitos não pode ser configurada como a era do domínio da pulsão de morte? A época em que vale apenas o gozo cego em nome de uma promessa de que quanto mais satisfação, mais vida, mas que na realidade isola cada vez mais o sujeito da realidade?

Ao pensarmos as dinâmicas de desvalorização da vida e a valorização, mesmo que tácita, da morte do outro, somos inclinados a pensar a teias da intolerância religiosa como uma tecnologia da destruição. Aquela promessa de “mais vida” se alimenta da morte daqueles que são constituídos como os outros. Nessa lógica, os sujeitos forjados enquanto abjetos morrem para que os que se reconhecem como sujeitos válidos, possíveis e detentores dos estatutos políticos de ocupação e narrativa, se mantenham em seus lugares de poder. A morte, simbólica ou objetiva, dos que expressam religiosidades diferentes atende aos ideais necropolíticos de um sujeito que não se propõe analisar a realidade fora dos seus enquadramentos.

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O gozo e a sua permanência orquestram uma realidade sem contradição. Consumimos todos os dias as imagens chapadas de uma realidade descrita pelas mesmas narrativas que, de modo ostensivo, desejam manter a ordem fabricada. Essa ordem retroalimenta os que são colocados como exceção, em seus lugares de “destino”. Todos aqueles que professam religiões que escapam à norma construída nas bases sólidas de um poder destrutivo, sofrem. Eles sofrem pelas marcações, pelos discursos midiáticos que tornam inexpressiva a sua fé, através da exotificação, da demonização e da marginalização sutilmente organizadas, atrás dos discursos potentes e simetricamente orquestrados na oposição nós versus os outros. O perigo da imagem chapada está na sua rapidez e esvaziamento. O filósofo coreano Byung Chul Han, em sua obra Sociedade da transparência, denuncia a sociedade contemporânea e o seu desejo irrestrito pela rapidez da imagem, ou seja, seu fetiche pelos quadros prontos da realidade e que, embora sejam anunciados nas telas das TVs, celulares e computadores, não incitam as consciências críticas e sim o consumo de valores criados para homogeneizar a nossa percepção. A nossa realidade está marcada pelo que o pensador chama de “vazio de sentido”.

O dano que causa essa imagem criada e consumida está na incapacidade que construímos de perceber as narrativas que se opõem à nossa. Pensemos, por exemplo, no processo de silenciamento e de escondimento das religiões de matrizes africanas. Essa organização à margem é resultado de uma imagem de mundo que não permite a manifestação da diferença. Vale lembrar o processo de higienização da Festa de Yemanjá em Salvador denunciada por Yuri Silva no texto: Em caso de racismo religioso, Prefeitura de Salvador desrespeita religiões de matriz africana e tira nome de Yemanjá de festa, publicado pelo site Geledés. Ao mudar o nome da festa para “Festa de 2 de fevereiro” o objetivo ficou evidente: retroalimentar o esvaziamento de sentido para que a festa se tornasse um objeto de consumo. Essa dinâmica mata o povo negro e a sua ancestralidade.

Ao esvanecer a possibilidade de presença das religiões que são construídas a partir do que é lido como norma, o discurso de poder se centraliza na economia de morte, na exclusão e numa espécie de antropofagia. Uma organização do mundo através da morte se dá no arranjo político que determina o outro como inimigo absoluto, como aquele que está destinado, por ser diferente de nós, à morte. A exclusão é um processo danoso e atende ao desejo de gozo permanente. Ela é efeito de uma realidade pensada sem o que é incômodo, sem a diferença e, em consequência, constituída nos processos de desumanização e violência. A exclusão é uma marcação do outro, ou seja, a denúncia de sua “anomalia”, para pensarmos essa dinâmica a partir das lentes de Foucault. O discurso que cria a norma cria, ao mesmo tempo, a exceção e precisa manter o abjeto à margem para se manter em seu lugar de centralidade. A intolerância religiosa, nesse sentido, é antropofágica, pois se alimenta da morte dos outros para manter os seus ideais forjados como normalidade.