Now Reading
Qual Igreja desejava a ditadura militar brasileira em nosso país?

Qual Igreja desejava a ditadura militar brasileira em nosso país?

EVANDRO TEIXEIRA

Começo o texto apresentando a vocês uma obra oculta chamada O Orvil, que lido de trás pra frente significa O Livro. Uma obra revanchista e revisionista sobre o golpe de 1964. É também uma resposta a obra Brasil Nunca Mais, que nos anos 80, denunciava os crimes da ditadura militar brasileira, tendo como fonte os processos da Justiça Militar. A mentalidade, da atual gestão do Estado brasileiro, é forjada nessas duas obras: revisionismo, ressentimento e retórica golpista da primeira e incômodo da repercussão da segunda.

No Orvil são denunciadas as conspirações e crimes da esquerda brasileira e suas tentativas em transformar o Brasil em uma China, Rússia ou Cuba. Ficou pronto no governo de José Sarney que vetou sua publicação. Na lógica narrativa da obra, ocorreram quatro tentativas de golpes comunistas no país: a primeira em 1922, com a criação do PCB; a segunda entre 1954 a 1964 com as Ligas Camponesas e discursos insuflados de Brizola e Luiz Carlos Prestes; a terceira entre 1964 a 1974 com a luta armada e, estamos na quarta tentativa, a pior de todas, onde temos a infiltração das instituições, em especial, na educação e na cultura, com o objetivo de doutrinar a sociedade e modelar uma mentalidade social rumo ao comunismo.

Exatamente na quarta parte, o capítulo dois, recebe o nome de A Quarta Tentativa de tomada do Poder, abordando exclusivamente à Igreja Católica. Ele é chamado de O Projeto do Clero dito Progressista, subdividido nos seguintes tópicos: 1. A infiltração marxista; 2. As linhas do Clero; 3. A Teologia da Libertação; 4. O Projeto progressista; 5. A “práxis progressista”. Além desse capítulo exclusivo, temos também, ao longo da obra, menções a grupos religiosos e mesmo a própria instituição. Importante destacar que a quarta parte da obra desenha o futuro, onde as instituições, tomadas pela esquerda, implementam uma revolução silenciosa. A Igreja Católica, nessa lógica, estaria tomada por infiltrados socialistas. Toda a obra é sustentada no combate do exército brasileiro ao comunismo em nosso país ao longo do tempo. É uma obra de defesa do exército. Se observarmos os discursos atuais, em tese, ainda estão. Os termos usados na abordagem da narrativa sempre são ligados a uma lógica de guerra: infiltração, oportunismo, guerrilha e alianças. Sempre usadas numa lógica de ameaça, ataque e defesa. Além disso termos usados, na atualidade, também são encontrados na obra, tais como progressistas, esquerdistas e militantes.

Quero, aqui, fazer uma análise do capítulo dois objetivando responder a seguinte dúvida: Qual Igreja desejava a ditadura militar brasileira em nosso país? Esclareço o motivo pelo qual me fiz esse questionamento. Ao ler a obra percebi na narrativa uma defesa e uma preocupação com os rumos do cristianismo e de um necessário resgate institucional e teológico da Igreja Católica que se desvirtuava. A seguir aprofundo esse debate.

Para compreendermos as discussões feitas no Orvil será preciso, antes, abordar a Encíclica Rerum Novarum1http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html – Acesso em 16/02/2021 às 15h em como O Concílio do Vaticano II2 http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm – Acesso em 16/02/2021 às 15h30.. A primeira refere-se a uma Encíclica chamada Rerum Novarum: sobre a condição dos operários escrita pelo Papa Leão XIII em 15 de maio de 1891. No século XIX, a Europa, vivencia a segunda revolução industrial, sua completa urbanização, o aprofundamento da pobreza e da miséria, a fundação de sindicados operários e de maior amplitude e aprofundamento das ideias socialistas. Nesse contexto, complexo e delicado, o documento mencionado foi publicado. Nele critica-se as péssimas condições de vida e salário dos trabalhadores, apoia-se os direitos trabalhistas e criação de sindicatos, porém, rejeita-se as ideias socialistas, o capitalismo sem controle e defende-se a propriedade privada com um direito natural. Afirma-se também que as sociedades vivenciavam, naquele contexto, uma crise ética e de valores morais resultantes da laicização. Por isso, defende-se a intervenção econômica do Estado na busca por justiça social e a favor dos mais pobres e, também, a caridade patronal como forma de amenizar as tensões dos trabalhadores. A solução dos problemas dos mais pobres estava numa ação conjunta da Igreja, do Estado, dos patrões e dos operários, a fim de garantir a paz entre as classes. Essa Encíclica dá início ao nascimento do pensamento social católico, transformando-se em pilar fundante da Doutrina Social da Igreja que conhecemos hoje.

O Concílio do Vaticano II, por sua vez, representa uma série de encontros, debates e discussões realizadas entre 1962 e 1965. O Papa e bispos do mundo todo debateram sobre rituais das missas, deveres dos padres, liberdade religiosa, costumes, dentre outros temas sensíveis e delicados à instituição. Ocorreu uma grande reflexão sobre o papel da Igreja no mundo moderno. Transformações foram implementadas, tais como as missas que passaram a ser rezadas nas línguas de cada país e não mais em latim. Caiu o uso obrigatório da batina e o padre é autorizado a usar trajes sociais, condenou-se tanto o capitalismo quanto o comunismo.

As decisões e orientações da Encíclica e do Concílio são as referências utilizadas, na narrativa do Orvil, contra o clero chamado de progressista no Brasil. Na obra, essas duas referências, são empregadas contra a infiltração marxista na Igreja e no desvirtuamento institucional. Assim, se sustenta a tese, da existência de uma infiltração das ideias socialistas na instituição, ameaçando a fé e a sociedade cristã brasileira. Tanto a Encíclica como O Concílio serão as referências basilares, uma vez que “Nosso objetivo era demonstrar a existência, se se pode dizer, de cristãos-marxistas, por respeito a Igreja – que somos tanto nós cristãos leigos como os padres e pastores – procurando separar o joio do trigo” [Orvil, p. 860]. A obra objetiva defender os considerados verdadeiros cristãos e, para isso, foi necessário a vigilância e, até mesmo, a prisão de membros do Clero na proteção dos valores tradicionais. Não se tratava de perseguição a Igreja como instituição, mas no expurgo de membros isolados que ameaçavam subverter valores os cristãos no Brasil.

Segundo o Orvil, a influência marxista e socialista, na Igreja começou com o nascimento da Teologia da Libertação [TDL] após as reuniões do CELAM [Conselho Episcopal Latino-Americano] que, em 1968, realizou a II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano  em Medellín na Colômbia. Nesse espaço teria nascido uma teoria, de influência marxista, que reduzia a teologia a uma ideologia política e profana. Importante destacar aqui, o uso da TDL no reforço da doutrina de Segurança Nacional que tinha como objetivo principal identificar e eliminar os inimigos internos. As influências externas, tais como a TDL, contribuíam na formação ideológica do ambiente doméstico brasileiro, reforçando a necessária vigilância e punição daqueles que questionavam e criticavam o regime estabelecido.

A partir da TDL ocorria a marxistização da teologia, onde o reino de Deus se aproxima dos objetivos do comunismo “[…] desenvolvendo a tese de que ambos têm a mesma finalidade: ‘a construção de uma nova sociedade no futuro’. Os cristãos concebem essa sociedade como o Reino de Deus na terra, os marxistas, como o ‘socialismo’ ou ‘comunismo’” [Orvil, p. 858]. Acreditava-se que essa nova corrente teológica construía pontes entre o cristianismo e o socialismo, pois ambos se sustentavam em três pilares: igualdade social, justiça e fraternidade. Essa aproximação do socialismo e o cristianismo, por meio da Teologia da Libertação, representava, no Orvil, o fim da fé, pois princípios laicos, políticos e sociais estariam presentes na Liturgia, na Homilia e na pastoral. Caminhava-se, portanto, para o fim do cristianismo. Para comprovar suas teses, a obra apresenta diversas atividades do Clero subversivo para a consolidação do seu projeto de poder. Temos, em especial, franciscanos e dominicanos, que são descritos como apoiadores de organizações subversivas e de atos de terror. Ajudam, também, no recrutamento de membros para as organizações, produção e distribuição de panfletos de cunho revolucionário, conventos como pontos de apoio e na ajuda da organização da guerrilha. Padres estrangeiros também são utilizados na obra como “provas” do projeto político de parte do Clero no Brasil. Frei Betto e Frei Tito são uns dos nomes mencionados.

Esses membros do Clero, progressistas e subversivos, são considerados no livro, como religiosos influenciados pelo marxismo e, que portanto, se afastaram das orientações dadas pela Encíclica Rerum Novarum e do Concílio do Vaticano II, pois distorceram suas resoluções e orientações, pregando a violência, a luta armada, a revolução e o fim do sistema capitalista para a construção de uma nova sociedade “Essa tese chocava-se com as ideias do Papa, que, na própria Colômbia, por ocasião do Congresso Eucarístico realizado em Bogotá, nesse mesmo ano, proclamava que “a violência não é nem cristã nem evangélica”, condenando a luta armada como meio para alcançar-se a justiça social” [Orvil, p. 282].Termos como Igreja é a casa do povo, educação popular e participação ativa da comunidade são vistos como perturbadores da ordem e socialistas. “É preciso que fique claro nesse trabalho que não se discorda aqui da ideia da Igreja de que a educação popular é necessária para ‘transformar os componentes das classes menos favorecidas’ em agentes da conquista de seus legítimos direitos e prepará-los para observar as normas de conduta impostas pela moral cristã. Nem se discute a validade de organizá-los para que possam pressionar o Estado ‘a reconhecer’ os direitos básicos dos subalternos e autonomia das suas organizações e, finalmente, a adequar-se às atribuições a Rerum Novarum e a Quadragésimo Anno” [Orvil, p. 870]. É possível ter direitos básicos, mas sempre obedecendo os princípios cristãos que o Estado brasileiro determinava como adequados. E tudo feito dentro da lei e da ordem.

 VEJA TAMBÉM
blank

Como a obra explicita as características de esquerda do Clero? Segundo o Orvil, a Teologia da Libertação, promove a subversão do cristianismo na medida em que ela é antropocêntrica, isto é, centrada na capacidade humana de transformar a realidade. Existe uma preocupação com o protagonismo humano, pois assim, transformou-se a teologia em discurso político-ideológico. Na narrativa religiosa o ser humano é coadjuvante e subverter essa ordem é subverter o cristianismo. Para o Orvil a Igreja, na modernidade, seguia as orientações da Encíclica e do Concílio Vaticano II, isto é, tem postura ética e não partidária em relação aos assuntos políticos, sociais e econômicos; aponta as injustiças, mas a resolução vem do Estado; tem postura de conciliação entre as classes e não de rivalidade entre as classes e, tudo isso feito, dentro da tradição e da doutrina. Para o livro, o que conscientiza as massas é a fé e a esperança, pois ambas não têm dimensão social e política. A Igreja deve acalmar os conflitos e não alimentar a luta de classes. Ajudar membros da luta armada, permitir o uso dos conventos, distribuir panfletos, ajudar Marighela fomentavam as contradições entre as classes e representam desvios teológicos graves.

O Estado brasileiro tinha medo de um ser humano autônomo e pensante. Ainda tem medo do ser humano renascentista e iluminista que pensa por si só, inclusive religiosamente. Deseja que homens e mulheres sejam guiados e conduzidos pelo caminho que Estado brasileiro determinar. E à Igreja basta apoiar o projeto estatal. Tinha e tem medo de uma Igreja que opta pelos pobres, pelos mais frágeis, exatamente como Cristo fez durante o Império romano. Viver a fé em comunidade, na defesa dos oprimidos e na busca pela transformação da sociedade, no Orvil, não é considerado fé, pois rompe com a ideia de um ser divino, enquanto entidade acima de todos os homens, que é o encarregado de conduzir as classes, ou melhor, a sociedade para a mudança. A mudança é divina e não humana.

Para a obra, a boa Igreja é aquela que sabe seu lugar: dentro das paredes do templo. Os tempos mudam, mas a Igreja não. Buscar mudar a realidade? Não. Isso é coisa de comunista. Basta a caridade patronal com o trabalhador como dizia Encíclica Rerum Novarum. Basta a caridade do rico com o pobre. Sem mudanças das estruturas sociais e sem afetar a ordem política e econômica. Essa seria uma primeira resposta à pergunta feita no início do artigo: Qual Igreja desejava a ditadura militar brasileira em nosso país? Uma Igreja conciliadora e não transformadora. Que sabe seu lugar. Uma Igreja obediente, de olhos fechados para a realidade social, econômica e política do país. Uma Igreja em silêncio e que compactua com o Status Quo, pois para o regime militar a fé não tem dimensão política e social. Para terminar, deixo aqui, uma dica para do próximo artigo: é possível identificar, na atual gestão brasileira, os discursos religiosos presentes no Orvil?


Notas

  • 1
    http://www.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum.html – Acesso em 16/02/2021 às 15h
  • 2
     http://www.vatican.va/archive/hist_councils/ii_vatican_council/index_po.htm – Acesso em 16/02/2021 às 15h30.