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A variedade atraente da terra dos deuses e deusas – Religiosidade, espiritualidade e misticismo como uma escalada natural no Hinduísmo

A variedade atraente da terra dos deuses e deusas – Religiosidade, espiritualidade e misticismo como uma escalada natural no Hinduísmo

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Entre a Era Vitoriana e a metade do século XX, a Índia era vista como um local exótico, religiosamente primitivo, repleto de crendices e ritos absurdos. Ainda que essa percepção tenha começado a se modificar no final do século XIX, com o avanço dos estudos mais sérios sobre a literatura védica – as escrituras milenares da ancestral civilização do local – e a chegada de alguns de seus mestres ao ocidente, os anos 1960 foram cruciais para uma mudança significativa na visão popular sobre a Índia e seus costumes religiosos, com jovens do mundo todo, sobretudo americanos e europeus, visitando o país em peregrinação, adotando práticas de yoga e meditação hindus, e até mesmo se convertendo em praticantes sérios de caminhos da vasta e múltipla tradição que chamamos de Hinduísmo. A partir desta imersão, que levou rock stars e lendas de Hollywood a retiros nos Himalaias, a Índia passou de nação de uma ‘religião atrasada’, que ‘cultua rios, vacas e ratos’, à ‘pátria espiritual do mundo’, o ‘capítulo místico da Terra’. Ainda que permaneçam lendas e materiais didáticos datados sobre o Hinduísmo, do tempo em que ingleses e portugueses buscavam a dominação cultural do local a partir de uma intensa tentativa de diminuir aquela civilização, o fato é que termos e conceitos como karma, yoga, reencarnação, tantra, pranayama, mantra, ayurveda, vegetarianismo etc. são amplamente difundidos no ocidente. 

Nesta nova perspectiva sobre o Hinduísmo, que passa a ser influente, ainda que permaneça em parte estigmatizado ou ressignificado de forma aleatória, busca-se sentido espiritual para problemas modernos, práticas que possam ajudar o ser humano das redes sociais a ter paz interior, qualidade de vida e um propósito superior (quem sabe?). Nesta busca, curiosamente, aspectos que consideramos comumente como “religiosos” são rejeitados, como divindades, devoção e ritos, em favorecimento a termos e conceitos que poderíamos encaixar como “espiritualistas”, em tese mais abrangentes e universais, como práticas de yoga, filosofias monistas etc. E aqui mora um problema grave para qualquer aproximação com o hinduísmo. Primeiramente, por se tratar de uma cultura completamente distinta, com parâmetros e paradigmas muito diferente dos nossos, devemos sempre ter bastante cuidado ao tentarmos entender este tema baseado em nossas crenças e percepções, apesar de alguns paralelos serem de fato possíveis. Além disso, o Hinduísmo não é uma religião unificada, mas um universo imenso de tradições, seitas, práticas, filosofias e teologias muito distintas, ancoradas em uma vasta tradição literária, igualmente imensa e diversificada. São milênios de história, estudos e práticas, o que torna a tarefa de unificação de conceitos algo impossível e a empreitada de rejeição ou ressignificação de alguns aspectos conceitualmente perigosa. Sempre que vemos alguém dar um veredito dizendo que “no hinduísmo é assim”, devemos desconfiar. Afinal, de qual dos hinduísmos ele está falando? Ainda que existam conceitos que perpassam as várias tradições hindus, um cuidado excessivo nunca é demais ao se evitar generalizações. 

A real liberdade no oceano e o dharma

Uma imagem tem se tornado popular nos últimos anos na internet, mostrando um peixe no aquário dentro de um oceano com um outro peixe livre. Com o peixe no aquário temos a legenda “religião”, e o peixe no oceano é legendado como “espiritualidade”. Um detalhe interessante e pouco comentado da imagem é que ambos estão na mesma água. E aqui começa, de fato, o nosso texto. A água dos peixes é a mesma, mas um está preso nas redomas de vidro do aquário, como alguém estaria atado a regras, regulações, ritos e mitos de um sistema religioso. O outro peixinho está livre na vastidão do oceano. Claro que o status do peixe livre é muito mais atrativo, mas como estar livre no oceano e não estar perdido, desnutrido, não ser devorado por peixes maiores ou pescado por humanos? Estar solto sem direção, sem propósito, sem nada é realmente estar livre? Nesse ponto, o Hinduísmo, em seus múltiplos caminhos, aponta um equilíbrio e uma jornada entre a religião e espiritualidade, culminando no misticismo, iniciando com o entendimento de outro termo popular por aqui: o dharma

De forma simples, podemos dizer que livros clássicos como o Vedanta-sutra sentenciam que a vida humana só começa quando o dharma é compreendido e seguido. Dharma é essa palavra intraduzível, essencial em todas as tradições do Hinduísmo, que aparece inclusive no termo que originalmente define o conceito de religião dentro da literatura védica – Sanātana-Dharma, a religião ou dever eterno. Como não existe nenhum equivalente semântico à palavra nas línguas ocidentais, dependendo do contexto, dharma pode significar “conduta prescrita”, “ocupação”, “dever”, “virtude”, “moralidade”, “justiça”, “mérito religioso”, “lei”, “caráter”, “sacrifício”. Dharma é o cumprimento do ritual védico pelos sacerdotes, o dever da família, do povo, a ética, o ideal de devoção, mas é ainda muito mais que isso. Como pontua o professor Ithamar Theodor em seu estudo da Bhagavad-gita, sob a égide da definição de Dharma está a natureza intrínseca, ontológica do ser, sua essência. O dharma do Sol é brilhar, como o dharma do fogo é aquecer, iluminar, queimar. Dharma é aquilo que não podemos deixar de ser. E aqui reside uma riqueza conceitual incrível resumida em uma palavra, que define tanto a religião quanto a espiritualidade. Afinal, e isso é quase uma unanimidade no Hinduísmo, nós somos definidos como almas eternas, momentaneamente encarnadas em um corpo com o propósito de nos libertamos da existência cíclica material. Assim, desempenhamos um dharma enquanto seres encarnados em uma situação específica, profissional, familiar, social etc., mas temos ainda um dharma existencial eterno, enquanto almas. Mas para chegar ao entendimento final do nosso dharma, o Hinduísmo recomenda um passo de cada vez, ainda que em sua multiplicidade ele não determine uma única possibilidade de caminhada. 

Em seu primeiro passo, a pessoa deve compreender basicamente a religião como dharma, vivendo em harmonia com a natureza, preceitos éticos e entendimentos concretos sobre a Divindade. Neste ponto, o agir correto, piedoso, veraz, compassivo e não-invejoso é inegociável e esta é perfeição desta etapa, o que capacita a pessoa a ir para o segundo ponto, em que ela pode transcender o dharma enquanto religião, nadando livremente no oceano da Verdade, já consciente de sua verdadeira natureza, propósito e caminho.

Em alguns Puranas, parte mais extensa e bastante popular da literatura védica, descreve-se três níveis de pessoas que se aproximam da transcendência. Há os que estão em um primeiro patamar, que veem o sagrado apenas no altar e em objetos como livros e materiais de adoração. Aqui, podemos fazer um paralelo simples com o conceito popular que temos de religião. Neste estágio, chamado em sânscrito de kaniṣṭha-adhikārī, a pessoa faz distinções, não possui ainda uma mentalidade aberta e pode chegar a discriminar o diferente por falta de compreensão adequada. Porém, após prática e postura correta, ela atinge um segundo nível, sendo chamada de madhyama-adhikārī, onde consegue visualizar o sagrado no altar, nos santos e mestres, não apenas de sua tradição. Esta compreensão mais abrangente e inclusiva pode ser chamada de espiritualidade, onde as diferenças de ritos, linguagens e conceitos contam bem menos que a essência. Aqui é o peixe fora do aquário, mas com a bússola e o conhecimento de navegação bem introjetados e reforçados pela sua prática dos tempos de aquário, como um kaniṣṭha-adhikārī. Por fim, ainda temos os que estão no nível mais elevado (uttama-adhikārī), que podem ver a Transcendência em tudo e todos. Neste nível não há qualquer traço de sectarismo e a diversidade de caminhos espirituais e religiosos é vista com louvor, já que seria um reflexo do próprio Absoluto. Neste estágio místico de entendimento da realidade como integralmente sagrada, a pessoa já vive além das dualidades, imersa em um oceano de prazer espiritual contínuo, independente de qualquer situação externa. Certamente, esta é uma visão bastante atraente, muito mais convidativa do que a necessidade de cumprimento de ritos e deveres. Porém, aqui temos a escalada, não sendo possível a chegada no cume sem o esforço de subir a montanha. 

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E esta é uma realidade do Hinduísmo em todos os seus caminhos: sempre há um esforço constante, uma prática diária, um lembrar-se contínuo sobre a nossa verdadeira natureza espiritual, posição e responsabilidade em relação a esta criação, aos demais e ao Divino. Não há fórmulas mágicas com atalhos simples, mas uma necessidade de conhecimento, prática e dedicação. E nisso temos uma espiritualidade ardente, muito presente na vida das pessoas, seja no detalhe da alimentação, do altar no lar, da oferenda simples, da meditação diária à magnitude das festas populares que reúnem milhões de peregrinos em locais sagrados, dos grandes ritos, dos intrincados livros de conhecimento. É algo que toca o chão da vida e o céu espiritual, onde a religiosidade é profunda, a espiritualidade é intensa e o misticismo é revelador. Mas não é gratuita, pois exige uma experiência real, concreta com o espiritual, com o Divino, e por isso é mística por excelência. É muito mais que os exotismos mostrados em reportagens e mais profunda que elementos de livros antigos ressignificados ao gosto ocidental e apresentados de forma simplória em lives e pôsteres virtuais. É exigente no mergulho, mas libertária em sua vasta sabedoria.