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Uma reação do corpo marginal

Uma reação do corpo marginal

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Quem quer que tenha dito que a alma e o corpo
se encontram na glândula pineal era um tolo.
Elas se encontram no cu, idiota.

André Aciman em Me chame pelo seu nome

 

Em artigo intitulado Por mais viadagens teológicas, André Musskopf afirma que, além da religião ser um dado da cultura, “não há como pensar a cultura sem pensar na forma como as diferentes expressões religiosas se materializam como manifestações culturais” (2015, p. 35).

Embora a experiência religiosa seja construída no cotidiano das comunidades e seus indivíduos, não sendo, portanto, propriedade das instituições, como assim firma o autor, é certo que deve-se considerar uma conjuntura histórica onde se vê confesso um composto entre as experiências de fé e as práticas sexuais, a sexualidade, a política dos corpos, enfim, frente a uma teologia e seus pressupostos heteronormativos tradicionais, “não como um elemento de confusão ou imprecisão, mas precisamente como formas de negociação, mistura e inter-relação que criam e recriam crenças e práticas na vida concreta das pessoas” (MUSSKOPF, 2015, p. 37).

Nesse sentido, Javier Sáez e Sejo Carrascosa, autores de Pelo cu: políticas anais, podem nos dar exemplos os mais variados, tendo em vista que é desse lugar – o reto, suas entranhas, o buraco obscuro, as pregas do insulto – que apontam não só as tecnologias de repressão contra o corpo, mas as políticas de reapropriação e as mais recentes elaborações sobre a produção do sexo, dos gêneros, das sexualidades e do destino das vidas humanas. Pelos anais da história, é sempre bom lembrar, somos levados aos campos de extermínio. Acto contra natura!

Contudo, embora possam ser levadas em conta outras instituições como a escola, a família, os órgãos federais etc, donde também se exerce o controle, a vigilância e o poder sobre aqueles que se manifestam dissonantes, no caso da religião as referências históricas onde o cu do “outro” foi usado como objeto de dominação para alargar os territórios clericais e a perpetuação do medo sobre os diferentes povos e suas crenças são as mais diversas. Saez e Carrascosa nos informam da seguinte maneira:

Na tradição europeia, sobretudo na espanhola, isso do cu é coisa de mouros. Para os árabes, são os europeus que vão lá pedir para serem enrabados […]. Para os invasores espanhóis da América, os índios americanos eram um bando de pecadores porque praticavam sexo anal de forma cotidiana. Sempre é o povo ao lado que pratica a sodomia1Para ver mais sobre o termo sodomia e suas variadas interpretações, consultar Saez; Carrascosa, 2016., nunca é algo próprio da sua ‘nação’ ou da sua cultura. Na Idade Média, castigava-se a sodomia por ser algo próprio dos infiéis dos povos muçulmanos. (SÁEZ; CARRASCOSA, 2016, p. 44).

A acusação de sodomia, então, passou a ser usada sempre que houvesse necessidade de punir os atos contra a natureza e, para isso, previam-se castigos como a castração, apedrejamento e a morte na fogueira. O critério para as sanções nos períodos medievais e modernos eram, em grande medida, amparados em razões religiosas e de acordo com as leis de imperadores e dos chefões das inquisições. Em suma, é preciso matar pelo cu – fazê-lo desaparecer, fechado para sempre. Amém!

Em Pedagogia do armário (2005), Rogério Diniz Junqueira, por sua vez, nos lembra que, ainda hoje:

Por meio de processos de normalização, uma identidade específica é arbitrariamente eleita e naturalizada, e passa a funcionar como parâmetro na avaliação e na hierarquização das demais: ela recebe todos os atributos positivos, ao passo que as outras só poderão ser avaliadas de forma negativa e ocupar um status inferior. (JUNQUEIRA, 2015, p. 39).

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Ou seja, um corpo dissonante sinaliza que é preciso dar início a uma operação de combate, levando-o, à força das vaias, mas também do ocultamento, ao calabouço da marginalidade. Instituir uma agenda de enfrentamento à normalização dos sujeitos configura-se como um obstáculo em razão das correntes disciplinares (quer sejam as igrejas, as entidades de ensino etc) que insistem na propaganda de que as lutas contra “a dominação simbólica, (des)legitimação de corpos, saberes, práticas e identidades, subalternização, marginalização e exclusão” (JUNQUEIRA, 2015, p. 41) são, afinal, agendas contrárias à natureza.

Desse modo, é necessário enfatizar a necessidade de uma reivindicação da passividade, de uma apropriação positiva do ânus, de uma subversão que atinja em cheio as peregrinações teológicas, ou, para referenciar Junqueira (2005), de denunciar e desconstruir as pedagogias do armário. Do contrário, aceita a indiferença, restaria não mais que obediência aos regimes pedagógicos e ditatoriais que autuam sem compaixão e à administração eclesiástica que festeja com a saúde do des-viado. Jesus fucking Christ!


Referências

MUSSKOPF, André S. Por mais viadagens teológicas. Revista Cult, São Paulo, n. 202, p. 35-37, jun. 2015.
JUNQUEIRA, Rogério Diniz. Pedagogia do armário. Revista Cult, São Paulo, n. 202, p. 38-41, jun. 2015.
SÁEZ, Javier; CARRASCOSA, Sejo. Pelo cu: políticas anais. Tradução Rafael Leopoldo. Belo Horizonte, MG: Letramento, 2016.


Notas

  • 1
    Para ver mais sobre o termo sodomia e suas variadas interpretações, consultar Saez; Carrascosa, 2016.