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Às religiões o que cabe às religiões. Ao Estado o que cabe ao Estado: sobre a PEC 181

Às religiões o que cabe às religiões. Ao Estado o que cabe ao Estado: sobre a PEC 181

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No dia 08 de novembro de 2017, a Comissão Especial da Câmara dos Deputados, altera as propostas de Emenda Constitucional (PEC) 181/2015 e 58/2011, no inciso XVIII do art. 7º da Constituição Federal que dispõe sobre a licença-maternidade em caso de parto prematuro. No relatório final, no entanto, foi inserido pelo deputado Jorge Tadeu Mudalen (DEM-SP) o conceito de que a vida deve ser protegida desde sua concepção.

De acordo com a matéria da Vice, a apropriação da PEC da licença maternidade é uma manobra da bancada conservadora para restringir ainda mais o aborto em casos de estupro, risco de vida da mãe e anencefalia. “A proposta dos parlamentares da bancada evangélica que comandam a discussão sobre a PEC é alterar o artigo 5º da Constituição Federal considerando a vida desde o momento da concepção.”

A discussão sobre o aborto e suas possíveis ampliações e restrições sempre envolvem um debate acalorado entre aqueles/as que defendem os direitos das mulheres e os setores conservadores e religiosos, especialmente na esfera dos setores de decisão política.

Diante disso, a revista Senso, tendo como uma de suas principais propostas discutir “à temática do senso religioso contemporâneo sob o olhar de múltiplas áreas do saber, como as Ciências da Religião, Filosofia, Teologia, Direito, Comunicação, Artes, Espiritualidade, Administração, Estética, e outros, com o intuito de trazer ao público um debate de alto nível e que ajude as pessoas a compreender as diversas formas de crer e não crer e, dessa forma, construir pontes de diálogo, superação de intolerâncias e construção de uma cultura de paz” , considera pertinente discorrer nessa nota sobre alguns pontos de interesse e esclarecimento comum sobre o tema do aborto.

Aborto e religião

O tema do aborto quando discutido a partir das religiões sempre perpassa a questão da vida e  sua preservação. Acreditamos que a vida deve ser defendida na perspectiva da justiça social, considerando que a concepção de vida precisa ser entendida como todo, dentro de um processo de pré-condições que possibilitam a emergência da mesma.

A partir dessa perspectiva o aborto então não é uma agressão a um ser humano, mas ao processo que tendia a constituir um ser humano. O que entendemos como vida não se trata somente aspectos biológicos, mas também, de aspectos filosóficos e conceituais.

O suposto discurso “defesa da vida” obscurece um problema social gravíssimo do aborto clandestino, que constantemente tem colocado em risco a vida de muitas mulheres, principalmente daquelas que vivem nas periferias do país, acarretando altos números de mortalidade materna, e esta realidade parece passar longe dos olhos da bancada evangélica e conservadora.

A religião é um sistema de sentidos, sendo assim ela dá sentido à vida, e, considerar a existência de vida desde a concepção é somente uma das muitas formas de se compreender o início da mesma, e não há problema nisso desde que essa crença se mantenha no âmbito privado da fé, logo, não deve exceder ao mesmo e ser argumento político. Mesmo entre filósofos e teólogos cristãos considerados “santos” não tinham unanimidade na questão. Para Agostinho de Hipona, por exemplo,  afirma que a vida humana começa quarenta dias após a concepção.

O direito ao aborto no Brasil

O direito ao aborto no Brasil deve ser tratado como uma questão de saúde pública, isso porque o mesmo é uma realidade e é realizado independente da legislação que o criminaliza, e é essa ilegalidade que faz com que se aprofunde o abismo entre mulheres pobres e ricas.

São as mulheres pobres do nosso Brasil que compõem o alto número de mortalidade materna em nosso país em decorrência de aborto clandestino em condições insalubres, sendo assim, o aborto é também problema de desigualdade social: A ricas abortam, as pobres morrem.1Ver matéria sobre o assunto em: www.saude.sc.gov.br

Compreendemos que o aborto é apenas um dos aspectos dentro de todo uma compreensão sobre o que são os direitos reprodutivos, que implicam um cuidado integral do ser humano como um ser pleno de direitos, considerando o âmbito da sexualidade e seu exercício de maneira saudável, um direito humano que deve ser assegurado pelo Estado.

Portanto, o Estado deve garantir a todos os cidadãos/ãs o direito a educação sexual para decidir, métodos contraceptivos seguros e legais para não abortar e aborto legal e seguro para não morrer. Entende-se a partir dessa lógica que o aborto seria então um procedimento dentro de todo um plano de educação sexual e reprodutiva, e que permite que o número de mortalidade materna, e até mesmo de procura pelo procedimento do aborto diminua.2Ver matéria sobre o caso no Uruguai: Uruguai: Após legalização, desistência de abortos sobe 30%, e o caso de Portugal: O que aconteceu após 10 anos de aborto legalizado em Portugal

E por fim, o Brasil deve reconhecer e do cumprir o compromisso que firmou nas conferências do Cairo (1994) e Bejing (1995) em relação aos direitos das mulheres, tratando o problema do aborto como uma questão de saúde pública.

Ampliação do aborto no Brasil.

Entendemos que a reprodução humana é uma escolha, um direito, parte da vida cidadã de mulheres e homens, e que é dever do Estado garantir as condições de efetivação do direito a escolha dos/as cidadãos/ãs no que se refere a sua vida reprodutiva legalizando o aborto e universalizando o acesso da contracepção e do aborto seguro de maneira digna.

A legislação em vigor não “salva” a vida dos fetos, e dos embriões, mas ao contrário, compromete a vida das mulheres que se submetem ao aborto clandestino. As mulheres no mundo todo são as que mais sofrem com a exclusão social, e 90% dos casos de mortalidade materna acontecem em regiões periféricas. Dentre as razões do grande número de mortalidade materna em países periféricos, o aborto clandestino é um dos maiores motivos.

Aborto e laicidade do Estado.

O destaque que se dá ao aborto nas discussões sobre os direitos reprodutivos, manifesta que o Estado brasileiro não vem intervindo de maneira adequada no tratamento e gerenciamento do problema do aborto clandestino.

A lei que criminaliza o aborto não tem evitado que o procedimento aconteça, ao contrário, tem comprometido o acesso à informação e mantendo um grande número de mulheres em situação de vulnerabilidade no país.

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Portanto, descriminalização do aborto é necessária, para que os princípios da consciência e da liberdade de escolha sejam respeitados, sendo estes os princípios básicos da laicidade.

Considerações finais

Diante do exposto, cabe refletir que em um Estado Laico, não cabe que as religiões, seja ela uma religião de maioria ou minoria da população, legisle sobre a vida da totalidade dos cidadãos. Isso não quer dizer que as religiões não possam se posicionar, a favor ou contra a descriminalização do aborto. Contudo, a elas orientarem seus fieis e não legislarem sobre o Estado. A elas cabe o púlpito, não o Parlamento. Ao fazer isso, as religiões usurpam um direito que não lhes cabe e como cidadãs e cidadãos cabe à nós, sociedade civil, questionarmos a ingerência das religiões em sua tentativa de legislar sobre os corpos das mulheres.

Outro aspecto que não se pode negligenciar diante da temática da vida é que, independentemente do começo, ela tem uma duração. É preciso construir políticas públicas e é preciso a mobilização da sociedade diante do escândalo da pobreza, da precariedade dos serviços públicos de saúde, do descaso com a educação básica e superior. A parcialidade da defesa da vida de grupos neoconservadores é um atentado à inteligência e um desserviço às cidadãs e cidadãos socialmente mais vulneráveis.

Às religiões ao que cabe às religiões. Ao Estado o que cabe ao Estado.


Referências

KIKUCHI, Priscila. “PELO SAGRADO DIREITO DE DECIDIR”: A CONTRIBUIÇÃO DE CATÓLICAS PELO DIREITO DE DECIDIR NAS DISCUSSÕES SOBRE LAICIDADE, DIREITOS REPRODUTIVOS E DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL. Dissertação de Mestrado realizada pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São Paulo. Defendida em março de 2014.

GRUPO DE MULHERES CATÓLICAS É CONTRA PEC QUE PREVÊ O FIM DO ABORTO LEGAL NO BRASIL.


Notas