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Estatuto da Família, democracia e os reforços às desigualdades e exclusões

Estatuto da Família, democracia e os reforços às desigualdades e exclusões

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Em 12 de junho, foi aprovado o polêmico Estatuto da Família. Uma data emblemática, na qual se celebra o amor e o enamoramento no Brasil, e nada mais propício que celebrar também as uniões construtivas que decorrem desses enamoramentos. Seria um fenômeno interessante, do ponto de vista do chamamento ao Estado para propor políticas que pensem o ser humano para além de suas individualidades, estendendo o olhar para os elos afetivos que compõem e constroem a sociedade. Nesse espírito de olhar para a composição familiar, sua dinâmica e suas necessidades, alguns Programas e Políticas com efetivo poder de transformação e impacto social foram criados, como o Saúde da Família e o Bolsa Família, que consideram a unidade familiar como um grupo de direitos e trabalham com as perspectivas da inclusão, da equiparação de oportunidades e acessos, e da diminuição das desigualdades.

O Estatuto da Família, no entanto, não acompanha esse mesmo espírito, porque parte de premissas restritivas e não amplificadoras. Premissas excludentes e não inclusivas, premissas que reforçam desigualdades de gênero. Logo nos primeiros artigos, a definição de família já informa a que veio o Estatuto. Família é definida como: “núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável” ou “por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. Outras configurações familiares, como as famílias estruturadas com pais homoafetivos, ou com pessoas de identidades de gênero não tradicionais, são excluídas do documento e, portanto, do acesso às políticas. Não é uma questão semântica. É uma questão de quebra de isonomia. Mesmo após inúmeros protestos, o texto não foi alterado, com a justificativa de que estaria de acordo com as definições constitucionais de família, como base da sociedade, já que a Constituição brasileira faz menção a “homens e mulheres”.

Salta aos olhos, nesse caso, que a lei é usada para justificar a própria lei, e assim segue-se reforçando conceitos e políticas excludentes com absoluto respaldo legal e formal, ao invés de modificar o conteúdo obsoleto da lei, adequando-o à vida contemporânea. Se hipocrisia tivesse um rosto, seria este tipo de funcionamento, a que equivocadamente chamamos de democracia.

Foucault trata da temática do controle social de corpos, sexualidades, relações, mentes, e é sempre útil no contexto das exclusões. O poder oficial opera justificando sua própria desumanidade porque controla a produção de saber, e com isso, o próprio conceito de desumanidade é proposto da forma como convém ao exercício abusivo do poder, visando a manutenção de “lugares” sociais e cognitivos. Isso ocorre com os demais conceitos, estruturais nessa discussão, como equidade, desigualdade, exclusão, democracia…

Devemos recordar que mudanças de mentalidades acerca das desigualdades não ocorreram historicamente de modo rápido e há toda uma justificativa social que embasa a manutenção de situações de privilégio. O direito ao voto das mulheres, por exemplo, não foi uma concessão de um homem consciente. Foi uma conquista de décadas de luta. Assim ocorre com toda a situação de exclusão social e desigualdade. Como nos lembra Paulo Freire, é o/a/x oprimido/a/x que deve romper com a situação em que está preso/a/x junto ao/à/x opressor/a/x/. O problema é que muitas Marielles se vão nessa árdua luta.

O Estatuto da Família acompanha outras propostas que acabaram por ser agregadas à Frente Parlamentar de Defesa da Vida e da Família, como o Estatuto do Nascituro, que prevê a criminalização do aborto em qualquer caso, inclusive os que hoje estão descriminalizados, como estupro.

A discussão conceitual sobre vida e família é absolutamente complexa e extensa, resvalando em representações, visões, sentimentos de várias matrizes: religiosas, médicas, científicas, psicossociais, políticas, do senso comum… Nas sociedades atuais, plurais e complexas, não se trata de opor um discurso contra outro, mas de buscar mediações públicas para caminhos mínimos de consensos democráticos.

E aqui volto a citar democracia como um conceito sendo vivenciado de maneira distante de seu sentido original, da ideia de “poder que emana do povo”. No sistema brasileiro de democracia representativa, lamentavelmente a população em geral não se sente devidamente representada, o que acaba por criar uma atmosfera de distanciamento entre o povo e a política, e também a consolidação de falsos preceitos, como o jargão de que “evangélico vota em evangélico”. Para adentrar o tema da religião nesse âmbito, em uma pesquisa coordenada por Leandro Ortunes (2018), numa parceria entre PUC/SP e INTERCOM, realizada com evangélicxs presentes na Marcha para Jesus, observa-se que 45,86% dos evengélicxs da amostra dizem não ter ligação com políticos/as/xs evangélicos/as/xs, seja por desconhecimento (18,2%) ou por não se sentirem representados/as/xs pelos mesmos/mesmas/xs (27,66%). Apenas 28,84% da população pesquisada se sente representada. O estudo também desmente a máxima do voto: evangélicxs acompanham as porcentagens de voto do restante da população. Apenas 4,5% da amostra declaram escolher candidatos a partir da indicação do pastor/pastora/líder religioso.

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Nesse sentido, embora as Bancadas religiosas católicas e evangélicas sejam expressivas no Congresso, nem sempre de fato, representam e acompanham as tendências dos grupos de cristãos que estão nas ruas vivendo suas vidas. Há que se considerar a heterogeneidade de qualquer grupo social, apesar dos pontos que trazem convergência e identificação. Ou seja, evangélicxs são vários e de muitas nuances ideológicas e políticas. Além de considerar, é claro, a distância colossal entre a religião oficial e a religião vivenciada na prática. Tudo isso nos leva à complexidade do debate: família, nem para todos/as/xs os evangélicos/as/xs representa a mesma coisa. E essa é apenas uma pontinha do debate, pois existem outras religiões com outras visões sobre família, com heterogeneidade de visões dentro do grupo.

Portanto, reduzir o debate à visão dxs religiosxs contra a visão dxs ativistas de gênero é de um empobrecimento brutal, além de induzir ao erro. E como chegar a um consenso? As saídas democráticas seriam de preservação das múltiplas vozes e posicionamentos, e por isso, a inclusão é a única forma de possibilitar que todas as vozes tenham espaço e convivam respeitosamente e isonomicamente. Que as famílias tradicionais sejam contempladas com políticas, assim como as famílias não tradicionais. Ampliar e incluir não retira direitos de ninguém. Omitir ou restringir como está na lei aprovada do Estatuto da Família, sim, retira, e exclui de maneira a reforçar desigualdades e violências. Por isso, com religião(ões), com gênero(s), com debates, com tudo o que é humano é que se faz política e democracia.

Referências

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
FOUCAULT, Michel. A Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade – A vontade de saber. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2015.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1968.
ORTUNES, Leandro; COSTA, Patrícia Garcia. Entre Deus e o voto: evangélicos e a eleição de 2018, INTERCOM, 2018. Acesso em agosto de 2018.