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Tuxáua não é mulher: povos originários, religião e designações do feminino

Tuxáua não é mulher: povos originários, religião e designações do feminino

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É o ano de 2019. 8 de março de 2019, Brasil. Ano 1 de uma nova era política e ética para brasileirxs: somos uma nação em decadência exposta. São tempos em que existe uma mulher que ocupa a cadeira de um ministério que leva o nome “família” e “direitos humanos” em um mesmo enunciado. São tempos em que raptores de crianças indígenas brasileiras ocupam cadeiras ministeriais. E utilizam retóricas religiosas para questionar a validade do habitat familiar indígena (ainda? Ou, de novo?). Nestes tempos me vejo aqui diante de uma temática que leva as palavras “povos originários”, “mulheres” e “religião”.

Primeiramente temos que falar sobre os conceitos. As expressões povos originários, mulheres e religião remetem a campos de significados distintos entre si. Mas são envoltas no trabalho contínuo de procurar as palavras corretas para nomear os fenômenos visíveis e invisíveis disponíveis.

Por exemplo, “povos originários” é expressão atrelada ao estudo dos processos de ocupação e colonização das terras “descobertas” pela Europa em seu processo de expansão político-econômica por meios marítimos. Na Oceania, a expressão usada foi aborígene, enquanto nas Américas prevaleceu o uso da expressão índio e posteriormente povos indígenas.

Chegar às índias por rotas alternativas inaugurou o tempo conhecido na história europeia como mercantilismo, bisavô daquilo que hoje chamamos capitalismo (aqui sugiro a divertida leitura de Eduardo Bueno em seu livro A coroa, a cruz e a espada – Lei, ordem e corrupção no Brasil).

Mulher, por outro lado, é palavra reencantada desde os movimentos feministas existentes desde o século XVIII e particularmente depois do trabalho de Simone de Beauvoir em O Segundo Sexo. Pensando nos possíveis significados para a palavra digitei no google “mulher” e apareceram 323 milhões de possibilidades. A Wikipédia logo apontou “O termo ‘mulher’ é usado para indicar tanto distinções sexuais biológicas quanto distinções socioculturais”. Gostei do conceito porque ajuda o que quero partilhar neste pequeno texto.

Quando comecei meu trabalho entre o povo kanamari no sudoeste do Amazonas, meus olhos eram como os de criança pequena aprendendo os nomes das coisas, das relações e dos significantes disponíveis. Uma palavra nova foi Tuxáua. Os padres jesuítas criaram no século XVI uma língua comum para facilitar a catequese que ficou conhecida como Nhengatu. Tuxáua é a palavra do Nhengatu para chefe da tribo. Provavelmente influenciados pela estrutura clânica tupi-guarani que apresentava a figura de um chefe clânico.

Logo percebi que as aldeias kanamari todas podiam apresentar como primeiro contato quem era seu tuxáua. A palavra, estranha às estruturas linguísticas e sociais dos kanamari, era utilizada como moeda de contato inter-étnico entre kanamari e não-kanamari. As comunidades das aldeias agiam assim desde muitos tempos ancestrais que remetem às origens dos contatos com os colonizadores.

Deduzi que a constituição de um persona Tuxáua na aldeia era exigência do contato, pois esta figura era (e ainda é) totalmente estranha às estruturas internas e ordenadoras da cultura kanamari. E o tuxáua seria sempre um homem, também por exigência do contato. Isto provavelmente porque é impensável para o colonizador, ainda que mulher, que um tuxáua seja mulher. Mulheres não são chefes, por definição, por constituição e por destinação.

Não demorou muito para que eu aprendesse que o papel de liderança cultural das mulheres nas atividades clânicas eram potentes e determinantes em vários processos decisórios. Mas invisíveis diante dos olhares dos antropólogos, arqueólogos e outras profissões indigenistas, ainda que mulheres. Por quê?

Esta pergunta exige uma longa resposta que ainda hoje tento construir com minha pesquisa. Por enquanto, ficamos com o óbvio: os projetos colonizadores autoritários presentes nas formas modernas do capitalismo não podem prescindir da destinação da mulher ao não-poder.