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O incrível caso da muralha de mulheres na Índia em protesto pela igualdade de gênero

O incrível caso da muralha de mulheres na Índia em protesto pela igualdade de gênero

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Cinco milhões de mulheres – menstruantes, ex-menstruantes e outras apoiadoras – de braços dados formando um muro de 620 quilômetros de extensão, de Kasargode à Thiruvanathapuram. A imagem mental impressiona. Mais ainda, se a descrição apontar para a diversidade de linhagens religiosas presentes, incluso mulheres mulçumanas e cristãs. O motivo: todas em apoio à igualdade de gênero.

O protesto ocorreu no dia 1º de janeiro de 2019 no estado do Kerala, no sul da Índia. O epicentro das manifestações que formou esse cordão humano, que ultrapassa o comprimento da retilinearidade do litoral gaúcho, ou quase a distância entre São Paulo e Minas Gerais, é o templo hindu Sabarimala que manteve suas portas fechadas às mulheres em idade menstruante (dos 10 aos 50 anos) até o dia que a decisão do Supremo Tribunal, em setembro de 2018, pôs fim a proibição.

O ato, quase poético, tem sido circundado por fortes e violentos protestos, greves e muitas prisões. Chamado de Vanitha Mathil (Women´s Wall) entre as disputas de interesse do nacionalista Modi, que pretende se reeleger, contra as forças de esquerda comunista do Kerala, estão as novas e insurgentes formas de luta dos feminismos indiano que estão implodindo a expansão do hinduísmo ortodoxo, lutando contra o castismo, o sexismo e o neo-colonialismo.

Decisão do Suprema Tribunal

Desde a sua independência (1947), a Índia tomou a direção da secularização das instituições. Claro que à sua maneira. E essa maneira foi a de incentivar a diversidade e a pluralidade religiosa. Logo, a sentença do principal órgão judicial, que chegou em setembro de 2018, não foi uma decisão vertical. Ela partiu de uma petição promovida em 2006 pela Associação de Jovens Advogados da Índia e pretendia quebrar a proibição que impedia as mulheres em idade de menstruar entrassem no templo de Sabarimala – um dos únicos a proibir completamente a entrada de mulheres nessa faixa-etária, outros templos hinduístas só “impedem” as mulheres que estiverem nos dias de menstruação de entrarem nos templos.

O palco que essa decisão encontrou é a cara das novas disputas da arena neoliberal indiana. De um lado, os grupos de seitas hidutvas (extrema-direita hindu) e nacionalistas do partido do 1º ministro Narendra Modi, o Partido Bharatiya Janata (BJP ou partido nacionalista hindu) mantém a posição de que tal decisão fere os valores do hinduísmo. Do outro lado, a Frente Democrática de Esquerda do Kerala tomou para si a responsabilidade de assegurar a decisão, e vem travando uma luta contra os conservadores de extrema-direita, inclusive contra o partido BJP.

Kerala comunista

O sul da Índia é um dos redutos de resistência ao governo Modi da extrema-direita hindu que cresce afrontosamente. Já em outubro de 2018, o ministro-chefe de Kerala – Pinarayi Vijayan, líder do Partido Comunista da Índia (Marxista) proferiu um discurso emblemático que enaltecia a importância da quebra de costumes – “se uma tradição é um grilhão, ela deve ser quebrada”, ele dizia.

Naquele dia às pontas do muro, erguido pelas mulheres lado a lado, eram compostas por K. K. Shailaja, ministra da Saúde de Kerala e líder do Partido Comunista da Índia (Marxista) ao norte do estado em Kasaragod, e na outra ponta, na capital Thiruvananthapuram, Brista Karat, líder do Comitê Central do Partido Comunista da Índia. Karat disse: “Fique de olho! Este muro, não é apenas para as mulheres de Kerala. É para todas as mulheres do país“.

Feminismo comunitário insurgente e revolucionário

Contudo, vem sendo central nas discussões dos grupos feministas dalits, mulçumanos, adivasi, trans, camponeses e outros, a possível cooptação da luta. Quando Vijayan fez a convocatória em outubro para que esse muro fosse construído por mulheres em 1º de janeiro, e pessoas de todo o estado responderam com entusiasmo depois de uma centena de fóruns públicos (e lá muitos ocorrem nas praças públicas por meio de lideranças locais) com 175 organizações progressistas aderindo à campanha, as mulheres fizeram um juramento de lutar por sua emancipação e conservar os valores das tradições renascentistas de Kerala: “Apoiaremos valores renascentistas, defenderemos a igualdade para as mulheres, resistiremos a tentativas de fazer de Kerala um manicómio e lutaremos pelo laicismo”. Mas essa aparente horizontalidade de decisão vem sendo confrontada por outros grupos feministas.

Jayati Ghosh, professora de Economia da Jawaharlal Nehru University em Nova Delhi explica que “os valores do “renascimento” que as mulheres mencionaram são os dos reformistas da Índia do início do século XX que se comprometeram com a defesa do laicismo, o fim da discriminação entre homens e mulheres e a eliminação do castismo. O “manicômio” refere-se a uma declaração feita em 1892 pelo monge revivalista hindu Vivekananda, que chamou a Kerala, um “hospício” de discriminação baseada em castas. Mas realmente está sendo levando em consideração o fim do castismo e do sexismo?

Já no dia 16 de dezembro, como forma de informar que todas as mulheres precisavam ser ouvidas uma Villuvandi Yatra (forma de protesto com carros de boi que foi anteriormente tomada pelo reformista social Ayyankali) liderada por mulheres dalit e adivasi foi organizada para desafiar o patriarcado bramânico e assegurar os direitos fundamentais das pessoas de entrar em espaços públicos independentemente de seu gênero. Segundo as lideranças, o patriarcado neo-brâmane é a principal razão por trás da resistência contra a entrada de mulheres no templo de Sabarimala. Eles também exigiram que o templo de Sabarimala pertencesse ao povo Adivasi e deveria ser devolvido a eles. Eles também declararam que as mulheres Dalit e Adivadi entrariam no santuário de Sabarimala em janeiro deste ano.

Mas por que essas mulheres estão contra a Vanitha Mathil (Women´s Wall)?

As perseguições por parte dos grupos hindutva de extrema-direita (hindus ortodoxos) e do governo de Modi estão para além do impedimento de entrar no templo. Rehana Fathima (certamente uma cristã convertida) foi presa em 27 de novembro de 2018 sob alegação de que algumas de suas postagens no Facebook prejudicam os sentimentos religiosos (hindus) e promovem “paixões comunais”. Duas outras mulheres, Bindu e Kanaga Durga foram detidas pela polícia por tentar visitar o templo de Sabarimala. Ammini K Wayanad, uma líder Adivasi, disse que o ataque a outras 11 mulheres mostra a falta de vontade de implementar o veredicto” por parte do governo keralense.

Mesmo que o governo do Kerala tenha se comprometido em fazer valer a decisão do Supremo Tribunal, nenhuma mulher até agora conseguiu entrar livremente no templo. As feministas apontam além de muitas controvérsias por parte do governo comunista keralense envolvendo a campanha do muro, a discriminação das mulheres mulçumanas, e forças deveras comedidas em fazer valer a decisão. Entre as principais controvérsias do Partido Comunista da Índia (Marxista), partido do governo do Kerala, que as feministas têm confrontado é que um dos membros o PK Sasi é acusado de assédio sexual por uma das lideranças da  Federação Democrática da Juventude da Índia e até agora ele continua a frequentar os atos e reuniões, e a falta de posicionamentos contra os ataques islamofóbicos às mulheres muçulmanas que optam por usar um hijab.

Os questionamentos das feministas confrontam o duplo padrão do governo do estado que por um lado está em campanha pelo empoderamento das mulheres, mas por outro desencoraja as mulheres a irem a Sabarimala para evitarem conflitos; passam pano para abusador de dentro do próprio partido e estão dispostos a lutar pelo empoderamento das mulheres, mas desde que elas sejam hindus. Muçulmanas com véus, trans (que no contexto indiano é outra casta e no sul da Índia possuem religião própria), dalit (que são consideradas impuras), adivasi (povos das florestas) mesmo que tenham participado do muro Vanitha Mathil, permanecem marginalizadas pelas políticas públicas ineficazes e expostas a toda sorte de violência. E eis que as feministas perguntam: renascimento para quem?

Não há dúvida que se está assistindo a revolução. Um feminismo que luta contra o castismo, sexismo, a misoginia e o neocolonialismo, mas que também está cansando de ser tutelado e cooptado, mesmo que pelos governos de esquerda, ou pelas agencias internacionais que em nome dos direitos humanos, que, carregados de visões colonialistas, pregam uma visão do feminismo de equivalente universal.

Que os ventos da revolução em curso na Índia possam inspirar as nossas urgentes revoluções aqui.