Vivendo sob uma história e cultura de dominação e exploração, a América Latina sofreu intensamente os efeitos do domínio do sistema capitalista. Nesse cenário, como sinal de esperança e ressignificação da ação cristã, a Igreja Católica do continente, a partir da organização popular, anuncia no Concílio Vaticano II (1962 a 1965) seguindo das Conferências episcopais de Medellín (1968) e Puebla (1979) a opção preferencial pelos pobres e pelos jovens². Essas opções possibilitaram ampliar o trabalho que vinha sendo desenvolvido com a juventude, para a construção de uma proposta mais orgânica, onde nasce a Pastoral da Juventude (PJ) em meados das décadas de 70 e 80, e também com inspiração organizacional da Ação Católica Especializada (JAC, JEC, JIC, JOC, JUC), nos anos 60. A partir daí, com o auxílio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), dos pequenos grupos de reflexão e das ações proféticas de muitas lideranças, as práticas libertadoras da Pastoral da Juventude são sinais de vida e esperança na sociedade até os dias de hoje.
A PJ possui um compromisso essencial com a Pedagogia do Oprimido, ou seja, compromisso com a formação integral e a defesa daqueles rostos que são mais marginalizados na sociedade: os(as) jovens, comunidade LGBTQI+, povos indígenas, ribeirinhos e quilombolas, negros(as), trabalhadores(as) e as mulheres. Tal princípio pastoral faz com que reafirmamos a práxis libertadora, na qual miramos o horizonte, mas sempre com os pés no chão. É com essa pedagogia pastoral que a PJ lança, em 2017, a Campanha Nacional de Enfrentamento aos Ciclos de Violência Contra a Mulher, inspirada e comprometida na defesa da vida das companheiras. Tal gesto pastoral mostra-se como sinal de resistência diante dos contextos patriarcais e conservadores que o mundo atual nos impõe nos diversos âmbitos da sociedade seja ele político, artístico, econômico, religioso, cultural e dentre outros.
Uma grande porção social ainda nos molda – ou tenta nos moldar, para nos induzir a viver num sistema de retrocessos, opressões e de aprisionamento. É tempo de nos libertar! “Liberdade és o desejo que nos faz viver”, parafraseando o compositor Zé Martins. Nesse sentido, é preciso romper com o silêncio e escancarar o grito pela vida daqueles e daquelas que mais precisam, e a campanha nacional nos ajuda nesse exercício libertador.
Para a Pastoral da Juventude, falar da vida das mulheres é falar de sagrado! A teologia bíblica feminina, as lutas de classe por meio dos movimentos sociais e toda bagagem acumulada da PJ há quase 50 anos, foi solo fértil para a protagonização desta campanha. Para toda a PJ e principalmente para as jovens mulheres que nela participam, tal campanha proporciona a desnaturalização do machismo e do patriarcado estrutural que sustentam a cultura da violência, para assim reconstruir as relações justas e equilibradas, mirando com urgência o horizonte da paridade de gênero.
Além de despertar internamente, na PJ e na Igreja, a sensibilidade do tema, a pastoral visa também a entender e a pautar com ousadia e coragem essa complexidade das violências às mulheres, visto a trágica realidade que vivemos. O cenário nacional que nos é apresentado ainda é de muito sofrimento e barbáries. Em pesquisas, segundo o último “Mapa da Violência: Homicídios de Mulheres” (2015), o Brasil é, infelizmente, o 5º país mais perigoso do mundo para as mulheres viverem. E, falando mais especificamente sobre juventude, aponta-se que a maior incidência de feminicídios concentra-se sobre as mulheres mais jovens, de 18 a 30 anos, e, dentre elas, as negras aparecem como as maiores vítimas. Os noticiários tornaram-se palco de divulgação das crueldades contra as mulheres: espancamentos, estupros, salário reduzido, furtos, desaparecimentos e até homicídios são algumas das manchetes que expõem cada vez mais a comunidade feminina. Porém os noticiários precisam ser instrumentos de denúncia, alertando a todos sobre a necessidade e urgência da conversão de tal cenário, pois a violência contra as mulheres não pode ser reduzida apenas a números, dados ou manchetes, são vidas que precisam ser cuidadas e protegidas.
Precisamos estar atentos às violências que nos cercam, pois chegam a ser muitas vezes minimalistas ou até tidas como “normais” via senso comum. Mas não é! Violência não é brinquedo nem piada. É preciso, para além de reconhecer, enfrentarmos as violências e a campanha nacional nos ajuda nessa perspectiva, abordando as diversas dimensões da violência contra a mulher: simbólica, psicológica, financeira, doméstica, sexual, midiática, física e obstétrica, como também proporcionando uma ação tanto formativa sobre as conjunturas quanto de empoderamento feminino.
Todas as conquistas femininas, até aqui, foram por meio de muita luta e organização, muitas vezes das próprias mulheres: o direito ao voto, Lei Maria da Penha, lei do feminicídio, dentre outras. Mas ainda há muito que se caminhar e conquistar, visto que muitas mulheres necessitam de ajuda e acolhida. Por isso, a criação de redes de apoio, central de acolhimento, rodas de conversa, dentre outras atividades, podem ser ações que promovam libertação na vida de muitos e muitas. Para além disso, é preciso também pensar num novo conceito de masculinidade, ajudando e colaborando com os homens numa desconstrução de saberes sociais impostos pelo sistema capital, reinventando a essência de ser homem para assim gerar uma cultura do bem-viver.
Contudo, percebemos que há um ciclo vicioso social na reprodução daquilo que oprime a vida dos(as) pequenos(as) e oprimidos(as). O Estado não garante as devidas medidas de proteção e sustentação à vida dos(as) que sofrem. Com tal condição, é preciso unir mão com mão e reafirmar a sororidade, a empatia e a fraternidade entre as mulheres e entre todos(as) aqueles(as) que lutam constantemente pela defesa da vida, dos direitos e dos sonhos. Por isso, o impulso para construir a Civilização do Amor envolve a beleza, o profetismo e as diversas criatividades e expressões juvenis. Tudo isso brota da presença do divino na juventude e nas mulheres, pois, sim, Deus também é mulher!
Referências
WALSELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2015. Homicídio de mulheres no Brasil. FLACSO Brasil: Brasília, 2015.
Pesquisa Instituto Avon/Data Popular, Violência contra a mulher: o jovem está ligado?, São Paulo, 2014
Civilização do amor-Projeto e Missão, 2013. Subsídio da Campanha Nacional da Pastoral da Juventude, 2019.
Graduada em Fisioterapia pelo Centro Universitário do Leste de Minas Gerais, no serviço da coordenação nacional da pastoral da juventude pelo regional Leste 2 da CNBB, militante no coletivo feminino Mulheres que Lutam/Ipatinga-MG.