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Estado Laico e a Diversidade: Intolerância religiosa como disputa do espaço público

Estado Laico e a Diversidade: Intolerância religiosa como disputa do espaço público

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A laicidade no Brasil inicia debates em torno do seu próprio conceito. A garantia de um Estado Laico se constitui na liberdade da manifestação do Sagrado em sua diversidade, garantia de sua prática, culto, como proteção a quem não tem assegurado seu direito à convicção integrando a série de direitos e deveres individuais previstos no art. 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988.

Ser ou estar em uma religião não faz do cidadão ter direitos ou, mesmo, deveres, superiores a ordem constitucional. Do mesmo modo não pode violar a Lei em nome de uma doutrina ou regra específica que cause prejuízo aos demais ou para si mesmo. Neste ponto, chega-se ao limite delicado, no cenário complexo da sociedade brasileira.

Visando a garantia de igualdade, justiça, e a possível paz social, as religiões, como espaços comunitários, integram o debate público por distintas razões:

– como possível meio de organização ou associação de pessoas, que por vontade própria assumem desejos de reciprocidade comunitária e convicções ao que se revela sagrado; ou, como um meio de organização que por assumir um ideal que considera transcendente, se compreende além das e dos demais que não integram o ideal do grupo religioso.

Nesta última opção, desencadeia-se uma série de consequências que, na seara da laicidade, se revela na exclusão de pessoas, nas mais variadas formas de violências, causadas pela intolerância religiosa. Neste sentido, a liberdade de culto ou de convicção pode ser compreendida não como direito e sim como privilégio.

E quando há privilégio, aponta-se um cenário de desigualdades de acesso, ausência da equidade e uma disputa gerada entre aqueles que buscam a manutenção de seu espaço contra aqueles que ainda lutam pelas garantias do direito ainda não efetivado.

No Brasil, desde a colonização e vinculação com o império, temos uma presença intensa de elementos cristãos que, de forma corriqueira, passam a ser vistos como símbolos, solenidades, atos comuns, da nossa convenção social. Igrejas são pontos de referências nos municípios. Contudo, não se sabe onde estão os Ilês, Terreiros de Umbanda, Batuque e Candomblé, onde estão as Casas Espíritas, Templos Budistas, Mesquitas e Sinagogas. Como reconhecer a nossa diversidade religiosa local? Da mesma forma evita-se questionar a presença da cruz no espaço público, como a leitura bíblica em início de atos do legislativo.

Na confusão, ou estratégia criada, de não se distinguir privilégios de direitos, o espaço político nacional dá margem a projetos de lei que ferem a liberdade de culto e convicção:

– Projeto de Lei nº 2756/2011: assegura aos clérigos o exercício dos atos litúrgicos em estrita conformidade com os respectivos ordenamentos religiosos. Situação: Pronto para Pauta na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC)

– Projeto de Lei nº 6314/2005: propõe que se acrescente inciso ao art. 142 da lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, Código Penal, excluindo o crime de injúria e difamação quando for a opinião de professor ou ministro religioso. Situação: Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário.

Seguem apensados ao projeto acima:

– Projeto de Lei nº 1089/2015: assegura o livre exercício da liberdade religiosa, de expressão e de consciência. Prevê que “líderes religiosos” de qualquer denominação possam ensinar a doutrina professada pela sua igreja, acerca de qualquer tema, de acordo com os textos sagrados por ela adotados. Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário.

Seguem apensados ao projeto acima:

– Projeto de Lei nº 2909/15: seriam nulos de pleno direito os atos administrativos e as decisões judiciais na parte em que estabeleçam restrições, modificações ou intervenções na área administrativa, fiscal, financeira ou de gerência de entidade religiosa. Proposição Sujeita à Apreciação do Plenário.

Vários Projetos de Lei, na intenção de criar um Estatuto da liberdade religiosa tem sido elaborados. Temos o PL 1219/2015 “Estatuto Jurídico da Liberdade Religiosa”, proposta retirada pelo autor, a qual apontava inúmeras incoerências no texto legal, como a proibição do Estado e seus poderes públicos imporem limitações quanto ao exercício da liberdade religiosa das comunidades indígenas, mesmo que sob a justificativa de manutenção das tradições locais, sob pena de responsabilização administrativa, cível e penal do servidor ou agente político que desse causa a tal violação, na forma da Lei. E, por fim, a proposta do Projeto de Lei 4356/2016, que, que parece ser mais inclusiva, segue apensada ao PL 1089/2015.

Ainda há projetos, em âmbito municipal e Estadual, que tem sido propostos, e atacam diretamente as religiões de matrizes africanas no seu direito a culto e liturgia.Seguem alguns dos exemplos (o acesso ainda é restrito ao meio de divulgação da imprensa local), no que se refere ao abate religioso:

– Tatuí (SP): Câmara Municipal aprovou, em 2015, legislação que prevê multa de mais de R$ 21 mil para quem usar, mutilar ou matar animais em rituais religiosos. Ficou proibida a utilização, mutilação e/ou morte de animais em rituais ou cultos, realizados em estabelecimentos fechados e/ou logradouros públicos, tenham aqueles finalidade mística, iniciática, esotérica ou religiosa, assim como em práticas de seitas, religiões ou de congregações de qualquer natureza. Projeto necessitava ser sancionado pelo prefeito.

– São José do Rio Preto (SP): em 2015, projeto pediu a proibição dos sacrifícios de todo tipo de bicho. Incluiu uma emenda para proibir também o sacrifício de animais no Centro de Controle de Zoonoses. No centro, animais que tenham doenças graves ou estão em casos terminais seriam sacrificados.

– Estado do Rio Grande do Sul: ainda segue em pauta no STF, Supremo Tribunal Federal, um recurso protocolado pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul (MP-RS), em 2005, que pede a retirada de um parágrafo do Código Estadual de Proteção aos Animais que assegura a liberdade das religiões de matriz africana para realizarem a sacralização de animais, de acordo com sua liturgia e culto.

Tais redações são inconstitucionais, quando se intui pela defesa e garantia da liberdade religiosa de, na mesma medida de igualdade, a todas as pessoas.

Exemplifica-se: Sexta-feira Santa e Natal são datas onde ocorrem o consumo de peixe, peru ou frango como forma de confraternização familiar e comunitária religiosa. Como medida igualitária seriam proibidas tais celebrações em nome da proteção aos animais?

A incompreensão das celebrações de ilês, terreiros e a própria história e legado das religiões de matriz Africana no Brasil, pelos componentes dos três poderes oportunizam espaço político e debate para tais propostas. Assim, sinaliza-se que o caminho para o diálogo e garantia legal para o direito a fé e a convicção está no acesso ao conhecimento das tradições (nos limites colocados pelos próprios religiosos), na informação dos saberes distintos, para a desconstrução de preconceitos.

Caso saiba de projeto de mesmo teor, basta denunciar ao Disque 100 ou a qualquer integrante do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa que integra a Secretaria Especial de Direitos Humanos.

O comitê, instalado pela Portaria 18/2014, é uma alternativa criada com base no Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH 3 – EIXO ORIENTADOR III: Universalizar Direitos em Contexto de Desigualdades. Diretriz 10: Garantia da igualdade na diversidade em seu Objetivo Estratégico VI “Respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado”.  Como colegiado consultivo nacional busca respeitar, promover o reconhecimento e o respeito à diversidade religiosa e defender o direito ao livre exercício das diversas práticas religiosas, aliado às estruturas e instâncias nacionais.

As possibilidades para enfrentar o cenário de conflito, ao tema – intolerância religiosa – que não se limita só ao Brasil, dependem de um processo coletivo, na denúncia e, principalmente, no acolhimento e no reconhecimento da população brasileira como diversa em credo, convicção, etnia, gênero e sexualidade.

Cabe perceber e compreender o quanto gestos locais, de apoio à liberdade e diversidade religiosa (sem que esta seja confundida como privilégio), podem reverberar de forma significativa quando somados a outras ações ou mesmo servindo de exemplo. Neste sentido, trilhamos com paciência e de forma consciente, compreendendo que estamos inseridos(as) em um processo social, no qual se pode, a longo prazo, mudar o senso comum, em comportamentos e ideias.


Referências

ANDA. Agência de notícias e Direitos dos Animais. Projeto que proíbe exploração de animais em rituais religiosos é aprovado. ANDA.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
BRASIL. Diário Oficial da União. Seção 1. Número 22. Sexta-feira. 31 de janeiro de 2014.BRASIL. Participação Social. Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR).
G1 Rio Preto e Araçatuba. Projeto de lei cria polêmica ao proibir sacrifício de animais em Rio Preto. G1 Globo.com. Publicado em 08/04/2015 15h38. Atualizado em 08/04/2015 15h38.
VARGAS, BRUNA. Sacrifício de animais entra na pauta do STF. ZH. ClicRBS.
Processo legislativo:
PL 4356/2016
PL 2756/2011
PL 6314/2005
PL 1089/2015
PL 2909/2015