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Espiritualidades seculares, ateísmos e equívocos sobre o Estado laico

Espiritualidades seculares, ateísmos e equívocos sobre o Estado laico

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Até pouco tempo, eu nunca tinha ouvido falar em Crenoterapia ou Termalismo social. Poderia apostar todo meu rico cofrinho que muitos leitores e leitoras deste texto provavelmente também não tenham conhecimento sobre estes termos. No entanto, em diversas unidades do SUS espalhadas pelo Brasil, já se pode usufruir destes e de outros tratamentos e terapias não convencionais, como Dança Circular, Ayurveda, Medicina Antroposófica, Meditação, Naturopatia, Fitoterapia, Reiki, Yoga, Musicoterapia, Osteopatia, dentre outros.  

Trata-se de uma oferta interessante, que traz abertura para se compreender a espiritualidade como uma das dimensões humanas, associadas à saúde e bem-estar, conforme aponta a Organização Mundial de Saúde há quase duas décadas. Este movimento de abertura de órgãos públicos oficiais à espiritualidade pode parecer contrastante com outros dados de nosso país, como o número de pessoas sem religião crescendo, debates sobre laicidade cada vez mais presentes na esfera pública (lembremos que o tema da Parada Gay deste ano foi Estado Laico), uma conhecida associação ateísta, a ATEA, que vem ganhando espaço nas redes sociais… Que mecanismo permite que a espiritualidade se desenvolva socialmente e ao mesmo tempo redesenha em bases mais disputadas o espaço que a religião ocupa em nossas vidas? 

O filósofo André Comte-Sponville chama esse contraste de “espírito do ateísmo”, indicando que não é necessária a renúncia à espiritualidade ao renunciar a Deus, deuses, deusas ou às religiões. Este autor, junto com outros, como Alain de Botton, Luc Ferry, Robert Solomon, Michel Onfray, dissociam aspectos éticos da religião e apresentam uma reivindicação secular: a de que é possível o exercício espiritual desvinculado de qualquer cenário religioso. Alguns destes autores propõem aproveitar a expertise das religiões e seu patrimônio acumulado em áreas como: vida em comunidade, prática da gentileza e solidariedade, sistemas de ensino, arte e arquitetura, reflexões e rituais sobre aspectos fundamentais da existência como amor e morte… Reconhecendo, portanto, que as religiões tiveram historicamente (e, em alguns contextos, ainda têm) um papel social organizativo, produtivo e de orientação, propõe-se um diálogo entre as necessidades seculares e esta carga histórica.  

A exceção entre os autores citados é Michel Onfray, que coloca ênfase em estabelecer uma ética sem resquícios da moral judaico-cristã. Sua proposta de ateísmo vem acompanhada de uma “laicidade pós-cristã”, que deve “descristianizar a ética, a política e o resto”. Onfray faz duras críticas ao relativismo do pensamento laico atual, que tem base, segundo ele, em uma moral judaico-cristã. 

Reconhecemos em sua escrita ateísta um estilo mais agressivo que os demais autores citados e um discurso no qual fica evidente o desejo de eliminação das religiões, que seriam expressões de “patologias mentais pessoais” dominando a esfera pública. O autor coloca a razão como uma alternativa de contraste ao mundo fantasioso da religião. Chega a dizer que “só o ateísmo possibilita sair do niilismo”, colocando o ateísmo e a razão como fontes de salvação humana.  

O pensamento de Onfray aproxima-se do que se costuma denominar de ateísmo militante, uma forma entusiasmada de defesa da ciência e da racionalidade que ressalta os malefícios sociais das religiões majoritárias. Dentre os tipos militantes, o neoateísmo, baseado em pressupostos neodarwinistas e cognitivistas, filho tardio de formas de pensamento como o positivismo e o iluminismo, tem ganhado adeptos e tem como maior expoente o biólogo Richard Dawkins, criador do termo meme, ávido debatedor contra o Design Inteligente e grande incentivador do ateísmo como forma de libertação da mente.  

Um de seus principais argumentos contra as religiões é que seu processo de transmissão e adesão seria similar a de um vírus, infectando mentes humanas. Considera também que um dos malefícios sociais das religiões (além do terrorismo, guerras, brigas entre povos e países) é o convencimento de pais religiosos a seus filhos e filhas, fenômeno que Dawkins chega a chamar de abuso infantil. Desmistificando conceitos clássicos das religiões, Richard Dawkins, considera a hipótese de Deus possível de ser debatida dentro do âmbito da ciência. Sob este respaldo científico, o neoateísmo tem apontado a ilegitimidade do caminho religioso, como forma de pensamento “primitiva”, “maléfica” e “delirante”.

Em Deus, um delírio, Dawkins compara o neoateísmo ao movimento gay. Trata-se de uma identificação que não é fortuita, mas que revela o núcleo do reconhecimento dos ateus sobre si mesmos como minorias que precisam se organizar em grupo e reivindicar espaços antes ocupados por religiosos. O ateísmo militante passa a apoiar causas desaprovadas pelas religiões tradicionais, como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, o uso de pesquisas com células-tronco, o uso de preservativos, entre outras, que acabam por identificar o ateísmo como um movimento cool, aberto, em contraste com os religiosos, entendidos pelo público leigo como fechados em dogmas. A religião tradicional vê-se pressionada a abrir-se a valores de um momento secular, em que as grandes narrativas que vêm de fora já não servem a todos os indivíduos.

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Nesse contexto, cabe ressaltar que a laicidade de Estado tem sido interpretada por uma parcela da sociedade como sinônimo de eliminação das religiões dos espaços públicos, um equívoco conceitual importante, já que é função do Estado laico proteger a pluralidade de crenças e não-crenças e suas manifestações, normatizando as relações com base em tolerância e respeito. Isso, em nenhum momento, indica ausência de religiões dos órgãos e espaços públicos, e sim regulamentação de sua participação, tornando-se uma das vozes dentro do debate democrático. Este fenômeno, que chamamos de ‘vingança moral dos ateus”, faz com que a bandeira da laicidade seja levantada como uma aliada do ateísmo, quando ela deve ser uma aliada das relações sociais que permeiam os universos das crenças e não-crenças. 

Claro que sempre devemos evitar as generalizações. O neoateísmo de Richard Dawkins não representa todos os ateus contemporâneos. Assim como há religiões, no plural, também podemos falar em ateísmos. De um modo geral, ateus e ateístas contemporâneos apresentam-se como descolados de qualquer tipo de dogma ou orientação externa, reivindicando autonomia de pensamento.  

Não é de se estranhar que após séculos de História de dominações religiosas e intolerâncias ligadas ao tema, surjam clamores por uma sociedade sem religião. Além das tragédias religiosas mundiais, no Brasil, até hoje sofrem intolerâncias os adeptos/as de religiões de matrizes afro, bem como os ateus e ateístas diante de um país marcadamente religioso como o nosso.  

No entanto, é desse delicado cenário que trata a laicidade e os debates entre ateísmo, religião e espiritualidade. Considerando um amplo espectro de crenças, podemos compreender um gradiente entre as religiões tradicionais, a espiritualidade que o SUS tem abraçado, e os ateísmos, na ponta da não-crença. O que une tais posições são as possibilidades de adesão a diferentes visões de mundo. Binômios como: evolucionismo e criacionismo, religião e ciência, racionalidade e superstição, verdade e ilusão, fatos e delírios, literalidade e relativismo, empobrecem a grandiosidade da tarefa que é fazer conviver estes universos com base no respeito e reconhecimento mútuos.