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No país quadrado é possível nascer crianças redondas. Existe escola sem partido? Ou existe partido na escola?

No país quadrado é possível nascer crianças redondas. Existe escola sem partido? Ou existe partido na escola?

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Era uma vez um país quadrado. Nele existiam somente linhas retas, pois até as pessoas eram quadradas, mas um dia naquele país quarado  nasceu um menino redondo.  Todos diziam que a criança era um “monstro inútil”. Considerado inútil em um país quadrado.

Decidiram encerrá-lo dentro de quatro linhas retas para ver se desta forma se transformava como os demais. Porém, esse povo quadrado tinha um problema grande, ou seja, as rodas nunca funcionavam bem, todos os veículos estragavam sempre nas rodas. Toda população dizia que as rodas deveriam ser mais quadradas. Para melhorar as rodas de linhas retas faziam muitas reuniões e não conseguiam resolver este problema. Porém, certo dia o “menino” redondo os ouviu e começou a rir das soluções indicadas pelas reuniões. O menino explicou como era fácil fazer as rodas circulares para que rodassem. Foi desta forma que o povo quadro compreendeu que os diferentes poderiam ensinar-lhes coisas novas. Esta é a fábula do “País quadrado” de Francesc Bofill.

Esta história aparentemente simplória nos remete a uma discussão que é o fato de alguns acreditarem que a sociedade é homogênea. Existe uma única forma de organização, de compreender a sociedade, que toda forma diferenciada é considerado um problema, um desafio.

A partir desta fábula podemos refletir sobre uma proposta que pretende interferir na educação brasileira, um tema que está sendo apresentado no Congresso Nacional, nas assembléias estaduais e câmaras municipais – o projeto ESCOLA SEM PARTIDO, que segundo seus propagadores visa combater um processo de doutrinação que ocorreria nas escolas de educação básica e nas instituições de ensino superior. Na realidade, esta história foi iniciada como um movimento em 2004 quando o advogado Miguel Nagib teria se incomodado com atitude de um professor que comparou Che Guevara a São Francisco de Assis. Ele compreendeu que este não era um episódio único, a partir de então decidiu encabeçar o movimento numa tentativa de documentar situações “porque, na verdade, ninguém sabia que essas coisas estavam acontecendo”, segundo ele (ESBRASIL, 2018,1). Porém, no ano de 2014 o Deputado Estadual Flávio Bolsonaro do Rio de Janeiro convidou o idealizador desta proposta a divulgá-la e tornando-a lei no país.

O Senador Magno Malta, porém, senador  pelo Espírito Santo, do Partido da República (PR), propôs como Projeto de Lei Escola Sem Partido (PLS 193/2016). Este propondo alterar a LDB 93994/96. O senador é pastor evangélico que presidiu comissões parlamentares sobre narcotráfico enquanto foi deputado federal e, posteriormente, a comissão da pedofilia no senado. Ele propôs em seu projeto a implantação do programa que assume o mesmo nome do movimento. Este projeto – PLS 193/2016 é composto por nove artigos de conteúdo. Inicialmente afirma que o “Programa Escola sem partido” será incluído na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (9394/1996). A concepção da LDB é alterada com os princípios do programa que passariam a ser considerados e estão no Art. 2º do projeto de lei como a neutralidade política, ideológica e religiosa do Estado; ainda o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico; como a liberdade: de aprender, de ensinar, de consciência e de crença; propondo o reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado; a educação e informação do estudante quanto aos direitos compreendidos em sua liberdade de consciência e de crença; o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções.

Com um parágrafo único afirma que o Poder Público não se imiscuirá na opção sexual dos alunos nem permitirá qualquer prática capaz de comprometer, precipitar ou direcionar o natural amadurecimento e desenvolvimento de sua personalidade, em harmonia com a respectiva identidade biológica de sexo, sendo vedada, especialmente, a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero.

Verifica-se que o autor desta proposição não consideram que a diversidade humana é algo presente nas comunidades desde o seu início, porém verifica-se que no final do século XX a sociedade se deu conta que esta especificidade, ao ser discutida no espaço escolar, permitiria à educação um espaço de superação de preconceitos, bem como de um processo de ensino e aprendizagem homogeneizado.

Sequer reconhecem na história do país que no passado os legisladores reconheceram e explicitaram esta diversidade como por exemplo no texto do Projeto da Reforma da Instrução Pública de Leôncio de Carvalho em 1879 quando  no país que era reconhecida uma única religião como oficial – Católica Romana, foi permitido aos alunos não católicos que estariam não obrigado a frequentar a aula de instrução religiosa que por este motivo deveria ocorrer em determinados dias da semana sempre antes ou depois das horas destinadas ao ensino das outras disciplinas (O Projeto de Reforma da Instrução Publica de Leôncio de Carvalho, nº 7247 de 19/04/1879 – Artigo 04).

Desconhecem que na educação contemporânea, a escola é o espaço onde o desenvolvimento de um sistema de ensino interconectado com os problemas da sociedade atual, abole a velha estruturação de um ensino fragmentado e descontextualizado da realidade. A valorização de diferentes grupos sociais, políticos, econômicos, étnicos, religiosos, etc., possibilita a reflexão de questões que contemplem as diferenças, ou seja, a diversidade na e da sociedade que compõe a escola. Necessita-se, assim, valorizar todo o conhecimento que os diferentes grupos trazem para a sala de aula, enriquecendo muito mais o ensino e a aprendizagem.

A possibilidade de reconhecer uma sociedade foi prevista no texto da Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional que afirma em seus princípios educativos, bem como os níveis e modalidades de ensino, abrangendo todos os aspectos da organização da Educação nacional. Como um ordenamento jurídico de grande impacto nas instituições de ensino, a Lei n.º 9394/96, compreende a educação em uma perspectiva da diversidade quando entre os princípios para educação nacional e propõe no Art. 3º como a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola, ainda a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; propondo o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; o respeito à liberdade e apreço à tolerância; vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais, com certeza a consideração com a diversidade étnico-racial. (Incluído pela Lei nº 12.796, de 2013).

Visando verificar a nova leitura a partir do que compreendem uma “Escola sem partido” proponho, no quadro a seguir, a distinção entre a Lei de Diretrizes e o Projeto. Essas unidades são rubricas ou categorias que reúnem um grupo de elementos com características análogas. Para a presente análise, considerar-se-á a seguinte categorização, sempre indicando primeiramente a categoria presente na LDB e em seguida do PLS, conforme o quadro a seguir.

LDB 9394/96 – Art. 3º PLS 193/2016 Art. 2º
II – LIBERDADE de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; I – NEUTRALIDADE política, ideológica e religiosa do Estado;
IV – RESPEITO à liberdade e apreço à tolerância; III – LIBERDADE de aprender e de ensinar;

IV – LIBERDADE de consciência e de crença;

X – valorização da experiência extraescolar;

XI – vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais.

XII – CONSIDERAÇÃO COM A DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL (incluído pela lei nº 12.796, de 2013).

V – reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado;

VI – educação e informação do estudante quanto aos DIREITOS COMPREENDIDOS em sua liberdade de consciência e de crença;

IX – garantia de PADRÃO DE QUALIDADE VII – DIREITO DOS PAIS a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções

Quadro  – Unidades de conteúdo da PLS 193/2016 e da LDB 93994/96

O Movimento Escola Sem Partido compreende que é possível uma educação neutra, pois ao defenderem que o estudante é uma “folha em branco”, estes são facilmente manipulados em decorrência da obrigatoriedade de os alunos estarem sob coação dos professores que promovem seus próprios interesses, opiniões, concepções ou preferências ideológicas, religiosas, morais, políticas e partidárias.

A reflexão sobre o diverso, a possibilidade de estudar, discutir a pluralidade de concepções passa a ser problematizada, pois o primeiro princípio do PLS afirma que a educação deverá ter uma neutralidade política, ideológica e religiosa.

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No dicionário encontramos que neutralidade é imparcialidade, mas como efetivamente não ter uma concepção? Por exemplo, o Brasil foi descoberto pelos portugueses ou invadido pelos europeus? Na sala de aula encontramos estudantes de denominações diferenciadas ou que não creem, é possível impedir a apresentação artística de algum momento celebrativo com uma música com texto religioso, em nome dos valores da família? O estudo da cultura afro-brasileira ou indígena pode ser omitido por não ser uma proposta da opção das famílias?

O projeto de lei insiste nos termos liberdade de consciência e de crença, propondo que os estudantes matriculados no Ensino Fundamental e no Ensino Médio serão informados e educados sobre os direitos que decorrem da liberdade de consciência e de crença assegurada pela Constituição Federal, especialmente sobre o disposto no art. 5º desta Lei. Em outras palavras, a liberdade de pensar e dizer o que crê ser verdadeiro. Efetivamente a liberdade de consciência constitui o núcleo básico de onde derivam as demais liberdades de pensamento.

A partir desse movimento, porém, as questões da pluralidade religiosa, discussões étnico-racial e de gênero passam a ser compreendidas como ideológicas e que desafiam a formação dos estudantes.

Efetivamente em um país quadrado verifica-se a possibilidade de que é possível conviver com sujeitos redondos, triângulos e outras formas, um dos espaços para articular a diversidade, para tal a figura do docente assume como mediador deste processo e não como um ser censurado por ação.

Como previsto no artigo 61 da LDB exige que os profissionais da educação escolar básica tenham sua formação em recursos reconhecidos, de modo a atender às especificidades do exercício de suas atividades, bem como aos objetivos das diferentes etapas e modalidades da educação básica. Uma formação sólida se dá mediante estágios supervisionados; capacitação em serviço para a associação entre teorias e práticas; conhecimento dos fundamentos científicos e sociais de suas competências do trabalho docente e o aproveitamento da formação e experiências anteriores, em instituições de ensino e em outras atividades.

Como tarefa do professor e da professora, Freire pontua que além de ensinar os conteúdos é preciso “também ensinar a pensar certo”. Para o autor, uma das condições necessárias a pensar certo é ter incertezas, pois é fundamental conhecer o conhecimento existente e estar aberto e apto a pesquisar e produzir um conhecimento ainda não existente (FREIRE, 1996, p.14).

E sim, a intenção da prática pedagógica deve ser considerada a partir do agente mediador — o professor, a professora, bem como as políticas públicas que gerem o sistema educacional. Daí a importância de uma formação docente consistente a atualizada. Tal formação é que garante a liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber.


Referências

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BOFILL, Fancesc. História do país quadrado. Madrid: Centro Catequético Salesiano, 1981.
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CORRÊA, Rosa Lydia Teixeira. Retrospecto sobre a educação brasileira. Diálogo Educ., Curitiba, v. 7, n. 21, p.235-264, maio./ago. 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. 25ª Ed. Biblioteca Digital Paulo Freire. Disponível em www.paulofreire.ufpb.br
JARES, X.R. Pedagogia da Convivência. São Paulo: Palas Athena, 2008.
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. 5. ed. São Paulo, SP: Perspectiva,1996.
MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal Anotada. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 1986.
REIS, Marcos Vinicius de Freitas; SARDENHA, Antonio Carlos; JUNQUEIRA, Sérgio (Org.). Diversidade e o campo da educação – diálogos sobre (in)tolerância religiosa.  Macapá : UNIFAP, 2017.
TEIXEIRA, F. O imprescindível desafio da diferença religiosa. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana, Brasília, Ano XX, Nº 38, p. 181-194, jan./jun. 2012.
UNESCO. Cultura de paz: da reflexão à ação; balanço da Década Internacional da Promoção da Cultura de Paz e Não Violência em Benefício das Crianças do Mundo. ― Brasília: UNESCO; São Paulo: Associação Palas Athena, 2010.