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Contribuições da neurociência para o estudo da espiritualidade

Contribuições da neurociência para o estudo da espiritualidade

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Talvez você já tenha se perguntado o que acontece no cérebro de alguém – ou até mesmo no seu – durante uma vivência da espiritualidade, seja ela dentro de um contexto religioso ou não. Durante muitas décadas, estudos da psiquiatria encaravam experiências religiosas mais profundas (visões, êxtases, iluminações etc.) como oriundas de distúrbios mentais ou de desordem psíquica. Essa concepção fez com que os avanços nessa área evoluíssem lentamente, o que ocasionou a escassez de material produzido, o desconhecimento da temática e o preconceito acerca desse campo de estudo. 

Como cientista da religião, entendo que essa postura deve ser descontruída, pois não considero as experiências da espiritualidade, sejam elas mais profundas ou sutis, como um sintoma patológico, mas sim, um elemento antropológico. Sob essa perspectiva, tais vivências também podem ser encaradas como dimensões benéficas para a saúde humana emocional e física, cumprindo uma função “terapêutica”, no sentido de proporcionar a essas pessoas um contato mais íntimo consigo mesmas, num processo de autoconhecimento e de construção de sentido para a vida. 

Sendo assim, as Ciências da Religião e seu caráter interdisciplinar nos ajudam a compreender melhor como as sujeitas e sujeitos significam suas experiências de espiritualidade, inclusive sob a perspectiva neurológica. O diálogo entre Neurociência e Ciências da Religião é um terreno fértil, ainda em construção, mas que pode nos oferecer dados bastante importantes para pensar sobre esse assunto. 

As buscas pelo sentido último da vida (seja numa perspectiva existencial, seja na concepção de pós-morte) e pelo contato com o transcendente, divino ou não, certamente caminham lado a lado com o advento da humanidade. No entanto, só nas últimas décadas foi possível observar as experiências oriundas desses processos sob um novo ângulo: dentro de nossas cabeças. Utilizando das tecnologias científicas, equipamentos e ferramentas da neurociência, muitos pesquisadores estão tentando descobrir o que acontece em nossos cérebros durante essas experiências profundas da existência (BIELLO, 2007).

 É importante lembrar que a Neurociência é uma das linguagens possíveis para pensar as espiritualidades, e as recentes pesquisas nos mostram dados interessantes no cérebro de pessoas que vivenciam esse fenômeno, sobretudo em contextos religiosos. Estudos do cérebro durante experiências religiosas, por exemplo, já são uma realidade crescente no mundo desde meados do século passado, e vem trazendo resultados satisfatórios ou até mesmo curiosos. Examinaremos a seguir alguns desses casos.

Vejamos primeiro o estudo realizado por Richard Davison, da University of Wisconsin que pode ser encontrado no livro “O estilo emocional do cérebro”, que consiste na primeira experiência com monges budistas tibetanos em um tomógrafo. Nessa pesquisa, foram realizadas várias medições dos impulsos cerebrais desses indivíduos durante a prática da meditação. Apesar das tradições religiosas orientais (como hinduísmo e budismo) utilizarem as técnicas de meditação há milhares de anos e já saberem dos benefícios da prática, pela primeira vez isso foi comprovado sob a ótica neurocientífica. 

Davison descobriu que existe uma considerável diferença no cérebro de pessoas que meditam, em relação ao de pessoas que nunca meditaram na vida. Isso se deve ao fato de que existe algo em nosso cérebro que se chama “plasticidade neuronal”, que é a capacidade de desenvolver ou atrofiar áreas. No caso dos monges budistas, as áreas ligadas a sensação de bem-estar, compaixão e resiliência eram muito mais desenvolvidas, e as áreas ligadas à ansiedade e depressão apresentavam uma atividade cerebral bem menor do que as de pessoas que não meditam diariamente. 

Outra referência nesses estudos é a pesquisadora de Havard, Sara Lazar que, ao perceber em si mesma os efeitos positivos da prática da yoga, resolveu pesquisar mais afundo sobre os correlatos da meditação no cérebro. Em uma entrevista, Lazar nos diz que

Sara Lazar percebeu que com práticas de meditação diárias de 40 minutos, as mudanças no cérebro começam a ser percebidas a partir da oitava semana, principalmente ligadas a sensação de bem-estar, cognição, memória, empatia, compaixão e redução de estresse.

Além dos estudos da neurociência acerca das práticas de meditação, temos o estudo, feito em 2008, pelos neurocientistas da Universidade de Montreal, Beauregard e Paquette, que mediram o cérebro de freiras carmelitas acerca de suas experiências místicas de união com Deus. No artigo publicado com os resultados, os pesquisadores dizem que 

na condição mística, as sujeitas foram solicitadas a relembrar e reviver (olhos fechados) a experiência mística mais intensa já vivida em suas vidas como membras da Ordem Carmelita. Essa estratégia foi adotada porque as freiras nos disseram antes do início do estudo que ‘Deus não pode ser invocado à vontade’. (BEAUREGARD; PAQUETTE, 2008, p.2, tradução nossa). 

Esses pesquisadores perceberam, a partir dos dados coletados do EEG, que as sujeitas realmente vivenciaram experiencias místicas genuínas. Foi observado que, durante essa experiência, várias regiões do cérebro foram ativadas, principalmente ligadas à percepção visual (imagens mentais); cognição; e emoções diversas como compaixão, alegria e amor incondicional. Os resultados da neurociência corresponderam aos relatos em primeira pessoa presentes na teologia mística da ordem ao longo dos séculos, muita das vezes protagonizados por grandes referências como Santa Teresa D’Ávila, São João da Cruz, Edith Stein e outros místicos carmelitas. 

Estudos da neurociência com outras denominações religiosas como as de matriz africana, xamânicas, protestantes, judaicas, islâmicas etc. ainda são escassas ou inexistentes. Isso denota a importância e necessidade de maior desenvolvimento neste campo de estudo, principalmente porque o que vem sendo observado, até agora, demonstra que em cada tradição religiosa parece haver diferentes correlatos no cérebro, o que indicaria a possibilidade de resultados diferentes em outras crenças durante as experiências das espiritualidades.

Tendo em vista que em cada denominação religiosa temos uma linguagem e imaginário religioso peculiar, assim como um conjunto de símbolos, culturas, espaços geográficos e contextos mediados das mais diversas formas, todas essas singularidades também seriam percebidas de modos distintos nos cérebros de tais praticantes. 

Enquanto cientista da religião, gostaria de enfatizar que somente os dados quantitativos oriundos dessas medições no cérebro, apesar de extremamente importantes, não são suficientes para compreender ou abarcar a totalidade da experiência religiosa de uma tradição, ou do cultivo da espiritualidade, sendo ela institucionalizada ou não. Isso porque a linguagem da neurociência (assim como qualquer outra) sempre terá limitações no que diz respeito ao completo entendimento das vivências humanas, incluindo as do sagrado ou do transcendente. 

Nesse sentido, a interdisciplinaridade se faz importante ao passo que nos permite ampliar e aprofundar o debate, ao dialogar com outros aspectos de ordem qualitativa, como os estudos bibliográficos; relatos em primeira pessoa dessas vivências; as narrativas teológicas e artísticas como a poesia e a música; expressões corporais como dança, meditações e orações inseridas nesses fenômenos, sem ainda deixar de lado os contextos socioculturais em que eles se manifestam: gênero, raça e classe. 

Gosto de pensar que essas tentativas de busca por correlatos neurais de experiências religiosas, místicas e/ou de espiritualidade tem a capacidade de desconstruir as ideias de senso comum de que religião e ciência são coisas completamente antagônicas e conflitantes. Além disso, realizar um mapeamento neural dessas experiências também pode ser útil para fins medicinais, como por exemplo o tratamento do Alzheimer, transtornos de ansiedade e depressão.

Portanto, creio que pensar a neurociência como uma linguagem em diálogo com as Ciências da Religião para o entendimento das espiritualidades é algo a ser estimulado e profundamente debatido nas mais diferentes esferas. Ainda temos muito o que desbravar nessa complexa relação que é o cérebro e a espiritualidade. 

 VEJA TAMBÉM
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Referências

ALMEIDA, A.; NETO, F. Diretrizes metodológicas para investigar estados alterados de consciência e experiências anômalas. Archives of Clinical Psychiatry, São Paulo. 2003.

AME, Neurocientista de Harvard revela: meditação reduz o estresse e pode mudar seu cérebro.  Acesso em: 02/2022. 

BEAUREGARD, Mario; PAQUETTE, Vincente. Neural correlates of a mystical experience in carmelite nuns. Neuroscience Letters, v. 405, n. 3, p.186-190, 2006.]

BIELLO, David. Searching for God in The Brain. Scientific American, out. 2007. . Acesso em 02/2022.

DAVISON, Richard J. O Estilo Emocional do Cérebro. Tradução de Diego Alfaro. Rio de Janeiro: Sextante, 2013. 

LAZAR, S W. Meditation experience is associated with increased cortical thickness. USA: NIH Public Access. 2005.

LAZAR, S W. Effects of a yoga-based intervention for young adults on quality of life and perceived stress: The potential mediating roles of mindfulness and self-compassion. USA: Journal of Positive Psychology, 2012.