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Múltipla Pertença Religiosa: os caminhos nàgó-yorùbá

Múltipla Pertença Religiosa: os caminhos nàgó-yorùbá

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O fenômeno da múltipla pertença religiosa não é algo novo na história da humanidade, mas tem se construído como um conceito acadêmico Ocidental na tentativa de compreender com a razão as articulações das identidades. Para o pensamento ocidental, a identidade é pautada na diferença oposicionista ao Outro, na relação de negação para a afirmação de si. O conceito da múltipla pertença religiosa (daqui para frente MPR) está em um emaranhado de colonialismos presentes nos estudos da religião. Nesse breve artigo,  buscamos trazer, a partir das nossas vivências, os conceitos e os caminhos decoloniais para pensar essa relação da MPR no contexto do brasileiro, a partir de reflexões africano-diaspórica, nàgó-yorùbá, na Bahia . Para o aprofundamento do tema sugerimos a leitura do livro “Religião, diálogo e múltiplas pertenças”, organizado por Angelica Tostes e Claudio Ribeiro (2019, Ed. Annablume).

Caminhos bifurcados que se encontram: a múltipla pertença religiosa

Na tentativa de mapear alguns tópicos importantes na literatura, Michelle Voss Roberts trabalha três modelos de MPR: i) “os grandes pioneiros” – o primeiro modelo ressalta as tentativas de uma elite de masculina de teólogos cristãos, majoritariamente de ordens monásticas, que buscavam combinar a compreensão ou prática de duas ou mais tradições. A autora menciona figuras como Abhistikananda, Bede Griffiths e Aloysius Pieris, que trabalharam nesse sentido; ii) “prática popular” – Roberts destaca que o segundo modelo é baseado no uso de diferentes ritos ou práticas na própria vida religiosa, sendo isso consciente ou inconsciente, e mais ou menos comunal. Ela nos dá como exemplo o uso de árvores de Natal ou rosários no contexto indiano, ou seja, a incorporação de elementos ou festivais da prática cristã em outra realidade religiosa; iii) “o híbrido” – a visão de Roberts sobre esse modelo é para aqueles que não se encaixam confortavelmente com uma identidade, mas existem em um ponto de intersecção entre tradições. Invocando Homi Bhabha, a autora entende esse movimento de mudança do foco “binário” para outro foco que enxerga o cotidiano da prática e como isso pode desafiar as fronteiras religiosas tradicionais (2010, p. 46-52). Michelle Voss Roberts sumariza seu modelo da seguinte forma: “O primeiro modelo de múltipla pertença religiosa foca na síntese doutrinal, o segundo nas práticas, o terceiro na interseccionalidade das identidades” (2010, p. 52).

Nesse sentido, Rose Drew observa que  “no registro histórico e nas tendências contemporâneas, encontramos uma gama de diferentes tipos e graus de múltipla participação religiosa em vários contextos” (2014, p. 248). Ela enumera seis pontos que se enquadram nesse amplo foco de múltiplas participações religiosas: i) identidade cultural e funções religiosas particulares; ii) educação religiosa dual; iii) participação ritual ocasional; iv) adoção de práticas ou ideias particulares; v) bricolagem contemporânea da religiosidade; vi) e diálogo inter-religioso e intercultural (DREW, 2014, p. 248-251). Então, Drew, assim como outras acadêmicas e acadêmicos, sugere que nem todos que vivem essas experiências se enquadram no termo “múltipla pertença”. Autores como John Thatamanil, Steve Bruce, Paul Hedges etc sugerem outros termos como “múltipla participação religiosa” (THATAMANIL, 2016, p. 7), “estratégia de participação religiosa” (HEDGES, 2017, P.51), “múltipla associação religiosa ou múltiplo interesse religioso” (BRUCE, 2017, 661).

Descolonizando a Múltipla Pertença Religiosa: as negociações da margem

Teresa Crist aponta que muitos estudos sobre a MPR não abordam questões como os deslocamentos territoriais advindos com a colonização. Dessa forma, é importante resgatar como isso influenciou na MPR, pois nem sempre é uma escolha espiritual, mas sim uma estratégia de sobrevivência de povos que foram deslocados de seus lugares de origem e colonizados em suas culturas e manifestações religiosas (2017, p. 17). Crist pontua que muitas vezes a MPR é apenas considerada a partir do Paradigma das Religiões Mundiais, influenciado pelos conceitos de religião pós-protestantismo, que privilegiam uma certa forma de participação, uma baseada na afiliação, crença, interioridade e individualismo de tal forma que nem todas as formas de MPR recebem a devida consideração. Sendo assim, para a autora, a MPR é, na verdade, um termo colonizado, baseado na superioridade desses valores e definições, que negam ou eliminam as experiências dos povos marginalizados” (CRIST, 2017, p. 17). Os deslocamentos ou os encontros coloniais não são considerados como MPR, sendo apenas rotulados como conversão sincrética, coação ou um novo produto de aculturação. E para a Crist, todas essas três formas de multiplicidade são MPR. “A MPR precisa, portanto, ser expandida e nuançada para engajar essas diferentes formas de múltipla participação religiosa, que são invalidadas como resultado da ênfase na escolha consciente e na interioridade” (CRIST, 2017, p. 17). Ecoando os pensamentos do teólogo Willie James Jennings, Crist diz que o deslocamento espacial frequentemente leva a um deslocamento espiritual (2017, p. 17). Essas identidades religiosas-culturais são negociadas para que haja uma sobrevivência – literal – da tradição. Então, ela ressalta os povos indígenas norte-americanos que para sobreviverem se converteram ao cristianismo, mas praticavam seus ritos em secreto (2017, p. 18). É necessário levar a sério o entendimento da MPR nas realidades em que culturas e religiosidades foram colonizadas e estereotipadas pelo Ocidente. Repensar as identidades e as categorias para que haja uma real compreensão a partir da realidade e não apenas de lentes já pré-configuradas sobre o que é religião, identidade e pertença.

Um exemplo mui acerca de nós que desafia essas categorias pré-estabelecidas é a experiência africano-diaspórica e precisamente nàgó-yorùbá na Bahia tecida a partir das condições de maafa, do “grande desastre” da escravidão, exílio, genocídio e colonização a que os povos africanos foram submetidos (NJERI, 2019, p. 7). Ayodeji Ogunnaike (2020, p. 147-171) constrói uma crucial crítica a predominância da análise do chamado “sincretismo afrocatólico” entendido “por meio da metáfora de uma máscara em que escravos africanos engenhosamente empregaram as tradições dos santos católicos para disfarçar sua adoração de divindades africanas, garantindo a preservação de suas tradições”.

Para Ogunnaike, que analisou uma série de elementos simbólicos e materiais do que conhecemos como “cultura yorùbá”, é certamente uma perspectiva eurocêntrica de cunho etnográfico duvidoso pensar em termos de “religiões mutuamente exclusivas” que prioriza uma imaginação na qual os nàgó-yorùbá na diáspora africana acreditavam que precisavam camuflar sua adoração às divindades a partir da veneração de santos católicos com o fim de manter uma espécie de monopólio religioso de cunho “autenticamente africano”. Na verdade, quando analisamos aqueles elementos constituintes e estruturantes do modelo de vida yorùbá pré-colonial, é mais pertinente conceber que “os próprios africanos criaram máscaras que mantiveram suas tradições e revelaram suas divindades, engajados numa teologia inter-religiosa profunda”.

Em outras palavras, a máscara não era para dissimular um exclusivismo espiritual africano, mas para driblar o exclusivismo religioso clerical católico-romano filogermânico. Um clero que, diga-se de passagem, não era representativo das raízes da fé cristã e eclesial ibérica que havia recebido por centenas de anos forte influência africana, árabe e judia muito antes da elite cristã visigótica de ideário proto-racista ter reprimido sua cultura cristã nativa que foi caracterizada como heterodoxa e pouco  canônica pelo Sacro Império Romano-Germânico e sua Igreja (BURMAN, 1994).

Além disso, considerando que ‘a própria ideia de “religião tradicional” (ẹ̀sìn ìbílẹ̀) emerge no seio de um laboratório interétnico sob o selo de yorùbánidade’ e (DIAS, 2013, p. 183-205), portanto, parte de um processo moderno de construção nacional de uma identidade yorùbá no período colonial e pós-colonial, é preciso recordar que na sua acepção original o conceito de ẹ̀sìn como “forma de adoração” dentro da cosmosense yorùbá já mantinha características pluriversais, híbridas, antagônicas e mesmo conflitivas (OGUNNAIKE, 2019, p. 85-89). Ademais, a presença islâmica precoce entre esses povos ainda no período pré-colonial ofereceu uma paisagem multifacetada que numa linguagem moderna chamamos por empréstimo de “inter-religiosa” (BADAWI, 1979, p. 171-177). Por fim, é vital considerar que nesse ambiente figuras bíblicas como Abraão, Moisés, Maria e mesmo Jesus de Nazaré já eram conhecidas e celebradas e não seria incorreto dizer, por conseguinte, que muitos africanos que na Bahia oitocentista chegaram tinham familiaridade com esses personagens com o atenuante de que estabeleceram alianças e criaram um legado compartilhado como é o caso dos ìmàlé (malês) e dos nàgó (MEIHY, 2020, p. 40-53; RIBEIRO, 2013, p. 190-201).

A imagem africo-baiana, portanto, mesmo diante do palco nefasto da escravidão e da excrescência da colonização, foi marcada por uma agência africana muitas vezes tocada por uma elite negra formada por mulheres e homens que negociavam raízes nàgó-yorùbá, islâmicas e ibero-cristãs e que convergiam seus pertencimentos relacionais numa identidade política pró-abolicionista e contracolonial. Um exemplo antigo e contemporâneo disso são as irmandades negras católicas, como a Irmandade da Boa Morte, formada sob os auspícios das “mulheres do partido alto”. Embora muitas vezes categorizada como “sincréticas”, as irmãs da confraria negam essa determinação antropológico-teológica feita sobre si mesmas e seguem afirmando que são profundamente católicas e profundamente àjèjì-nàgó, isto é, capazes de identificar limites, estabelecer complementaridades, diferenciar elementos simbólicos, negociar com as estruturas e manterem-se inteiras, nunca divididas (CANGUÇU 2019; BRASIL, 2011).

Considerações finais

Esse breve texto serve como um incentivo aos pesquisadores e pesquisadoras a repensarem novas categorias de religião e identidade. Um mergulho se faz necessário para redescobrir essas identidades múltiplas que são encontradas em cada esquina de nossas cidades e territórios, nas religiosidades que se interpelam e misturam, por vezes como água e óleo, outras como o gelo no mar. O cotidiano é o espaço dialogal, espaço de negociar, destruir e reconstruir a si mesma, nesse entre-lugar, nesta vida real. São os entrelugares, utilizando o conceito de Homi Bhabha, da fé que os povos subalternizados se posicionavam frente ao poder, recriando potencialidades, repensando caminhos. “Esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboração de estratégias de subjetivação – singular ou coletiva – que dão início a novos signos de identidades e postos inovadores de elaboração e contestação” (BHABHA, 2013, p. 20).


Referências

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BHABHA, Homi K. Signs taken for wonders: Questions of ambivalence and authority under a tree outside, Delhi, May 1817. Critical inquiry, v. 12, n. 1, p. 144-165, 1985.

BADAWI, Abduhu. O local da cultura. 2° Edição. Belo Horizonte: UFMB, 2013.

BRAAK, André van der. “Chinese Chan Buddhism in the Netherlands as an Example of Multiple Religious Belonging”, in Religion and Social Cohesion: Western, Chinese and Intercultural Perspectives, eds, André van der Braak, Dedong Wei and Caifang Zhu, Amsterdam: VU University Press, 2015, 159-168.

BRAGT, Jan van. “Multiple Religious Belonging of the Japanese People,” in Many Mansions? Multiple Belonging and Christian. Wipf and Stock Publishers, 2010. Identity, ed. Cornille, Catherine, Maryknoll, NY: Orbis, 2002, 7-19.

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BURMAN, Thomas. Religious polemic and the intellectual history of the Mozarabs, c. 1050–1200. Leiden: Brill, 1994.

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DIAS, João Ferreira. Dos “Nàgó” da Bahia aos “Pọ́́rtúgérè” de Lisboa: Um olhar sobre identidade e religião em diáspora. Cadernos de Estudos Africanos, N. 25, p. 183-205, 2013.

DREW, Rose. Christian and Hindu, Jewish and Buddhist: Can You Have a Multiple Religious Identity?. Controversies in Contemporary Religion, v. 1, p. 247-272, 2014.

MEIHY, Murilo Seb Bon. Xangô vai à Meca: Islã, comércioe as religiões tradicionais iorubás. Exilium Revista de Estudos da Contemporaneidade. V. 1, p. 35-55, 2020.

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RIBEIRO, Cláudio. Fronteiras. entrelugares” e lógica plural: a contribuição dos estudos culturais de Homi Bhabha para o método teológico. Estudos de Religião, v. 26, n. 43, p. 9-21, 2012.

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