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Wicca: Saindo do armário com a vassoura em uma mão e a bandeira do arco-íris na outra

Wicca: Saindo do armário com a vassoura em uma mão e a bandeira do arco-íris na outra

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A Wicca, também conhecida como bruxaria moderna, é uma religião de conexão com as forças da natureza das quais fazem parte a Deusa criadora e o seu consorte, o Deus. Trata-se de uma religião que celebra a vida e em que seus deuses se manifestam na cultura, na natureza, no mundo e no universo, representando tudo o que existe e se fazendo sempre próximos de nós. Foi na descoberta desta religião que eu me descobri.

Ao concluir o ensino médio, intensifiquei a minha busca religiosa, logo depois de ter me afastado do cristianismo por não corresponder às minhas necessidades espirituais. Por mais que compreendesse a Bruxaria nas bases do senso comum, como algo ruim, o assunto me atraiu por acreditar em magia, energia, algo que vai além da compreensão estereotipada. Acabei enfrentando os meus medos e descobrindo do que se tratava realmente a Bruxaria. Em minhas primeiras pesquisas, e através delas, associei a Bruxaria à palavra Wicca. Foi um importante momento, quando havia diversas indagações internas, comum a qualquer adolescente de 17 anos recém-formado, inclusive estava em pauta a minha sexualidade. Porém, naquele momento, era mais importante buscar a minha espiritualidade do que trabalhar com um assunto tão delicado.

Quando completei 18 anos e já tinha estudado um pouco mais sobre a religião Wicca, tive a coragem de falar sobre o caminho escolhido para as pessoas do meu núcleo familiar mais próximo (minha mãe e minha irmã). Então, resolvi sair  do armário das vassouras.  Assumir uma religião que difere completamente do cristianismo não é fácil, principalmente quando a sua religião é a Bruxaria.  Não falei para meus familiares que havia aderido à Bruxaria e, sim, à Wicca.  Expliquei do que se tratava e depois de alguns meses informei: “então, isso é Bruxaria”. Foi a melhor forma que eu encontrei, pois vivia em uma cidade muito pequena, no interior de Minas Gerais e não existia uma diversidade religiosa muito grande. A maior parte da comunidade era católica, sendo que também havia alguns evangélicos.  Não havia nem mesmo pessoas de religiões de matriz africana.

A Wicca fez com que eu me sentisse mais livre, sem grandes dogmas e tabus, como na maioria das religiões. Mas, por mais que compreendesse a ideia de liberdade, no começo, eu não me assumi gay. Graças à Wicca, pude ter os meus primeiros contatos com gays e lésbicas, comecei a observar que os praticantes da Bruxaria não tinham problemas com a sua sexualidade. Todos podiam falar sobre o assunto sem censura ou qualquer julgamento depreciativo.  O mais importante era ser feliz, sempre respeitando o dogma da arte: “faça o que quiser sem ninguém prejudicar” e a lei tríplice “tudo que fizer de bom ou ruim voltará para você três vezes”, entregando a responsabilidade da minha vida em minhas mãos e fazendo compreender que poderia caminhar tranquilamente pelo mundo, somente com esses dois conselhos, podendo ser eu mesmo. Foi nos encontros e rituais da Wicca que pude, pela primeira vez, orgulhar-me de ser um homem gay.

Comecei os meus estudos na Wicca no final do ano de 2007 e somente em 2010 resolvi entrar para uma tradição de Wicca.  Antes seguia um caminho de estudos e rituais autônomos. A Wicca é dividida em tradições, com diferentes características, mas sempre com alguns princípios básicos da religião. Cada tradição tem suas formas de transmissão de ensinamentos, rituais e mistérios conhecidos apenas pelos seus iniciados (pessoas que fizeram um treinamento e passaram por um ritual de iniciação).  Acabei escolhendo a Tradição Diânica Nemorensis, uma tradição que possui um foco muito grande na figura feminina da Deusa e que, resumidamente, busca compreender o mundo através das diversas Deusas já cultuadas por diferentes povos espalhados pelo mundo. Crê-se no despertar do poder feminino, proporcionando a cura da sociedade, a luta contra o  patriarcado e a  imposição masculina.

Foi na Tradição Diânica Nemorensis (TDN) que me aceitei e encontrei forças para me assumir como um homem gay.  Fui tirando os resquícios que ainda existiam de não aceitação da minha sexualidade, possibilitando o despertar do meu poder pessoal, com o qual consegui desconstruir o masculino imposto pelo patriarcado e sacralizar a minha forma de ser homem.

Na TDN, ao decorrer do treinamento, que precede a iniciação, trabalhei com o autoconhecimento e fui compreendendo a espiritualidade voltada à Deusa. Foi possível compreender também, através de diversos mitos, como o masculino pode se expressar de diferentes formas. O fato de ter tanto contato com Deusas fez com que não me envergonhasse de características atribuídas ao feminino. Desta forma, a parte feminina existente em meu ser se reconciliou com o meu masculino, reduzindo conflitos internos relacionados ao gênero.

Hoje, estou em paz com minha sexualidade, parte disso graças à Wicca, o que a minha religião anterior atribuía como profano, agora, para mim, é sagrado. Ser gay não me afasta dos Deuses. Ao contrário disso: aproxima-me deles, pois posso expressar minha verdadeira natureza, e é isso que me liga à centelha divina.  Meus Deuses não me condenam ou me julgam, eles se manifestam em tudo que existe no mundo, inclusive na minha sexualidade.

A Deusa, divindade principal da Wicca, é acolhedora, ama todos os seus filhos da forma como eles são e permite que sejamos donos de nossas vidas, para caminhar livremente por este mundo, sempre sendo responsáveis pelos nossos atos. Ela se entristece ou se enfurece somente quando a humanidade caminha em dominação e de forma destrutiva sobre este solo, que é sagrado e é o seu corpo. Depois de um longo período adormecida diante do patriarcado, Ela despertou não somente através da Wicca, mas em todas as espiritualidades e religiões voltadas a Ela, para nos ensinar que a lei é o amor e que, através do amor, podemos resolver nossos conflitos internos e externos. A Deusa é a nossa grande criadora. Dela surge o Deus, considerado seu filho e consorte, tudo que existe no mundo também surgiu Dela, pois seu grande corpo é o próprio universo e tudo que está contido nele, tudo que existe compõe este grande organismo que chamamos de Deusa.

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Vejo todas as Deusas cultuadas pela humanidade, faces da Grande Deusa e todos os Deuses como face do Deus. Ao mesmo tempo que eles e elas são manifestação de duas divindades principais, eles e elas são diferentes. Cada divindade com suas características próprias contemplando as diferentes manifestações da natureza ao nosso redor e da natureza interna da humanidade.  Essa pluralidade de Deusas e Deuses nos permite compreender a diversidade humana, inclusive quando se trata de sexualidade, sempre encontramos um mito antigo que contempla nossos desejos, conflitos e compreensão de situações que acontecem em nossas vidas.

Existem diversos Deuses antigos que contemplam a nossa sexualidade em seus mitos. Um dos deuses com que mais me identifico é Dionísio. Dionísio é um Deus grego, filho da mortal Sêmele e do Deus Zeus. Devido a isso, teoricamente, ele deveria ser um semideus, mas a gestação dele é interrompida bruscamente quando sua mãe pede a Zeus que revele a sua verdadeira face e, logo em seguida, ela é fulminada, como se fosse atingida por um raio. Na mitologia grega, os Deuses não podem revelar sua verdadeira face para mortais, pois liberam um poder muito grande para humanos suportarem. A gestação de Dionísio finaliza nas coxas de Zeus, que o salva e faz com que ele se torne um Deus. O fato de Dionísio ter uma mãe mortal o aproxima ainda mais de nós, mostrando a sua forte ligação com os nossos instintos humanos. Ele é um Deus do prazer, da alegria, da loucura e das festas. Ele revela tudo que existe dentro de nós, mostra a nossa verdadeira natureza e que ela precisa ser expressada no mundo, para que não façamos mal a nós mesmos e nem aos outros. A loucura dele é liberar tudo aquilo que existe dentro de nós e que é negado. Talvez não seja uma loucura no sentido comum da palavra, mas uma forma de libertação.  Conectar-se com Dionísio é estar em harmonia com a nossa essência, com os nossos instintos e com a nossa sexualidade, compreendendo que aquilo que nos gera prazer também é sagrado, fazendo assim como no mito, transformando o que é humano em divino.

Em um de seus mitos, Dionísio se apaixona pelo jovem e belo Ampelos. Em um acidente, Ampelos morre e Dionísio sofre com esta tragédia. As Moiras trazem Ampelos de volta numa nova forma:  uma Videira. Dionísio cria o vinho, trazendo a doçura do seu jovem amado Ampelos nas uvas, criando o vinho que, em sua embriaguez, lembra os aconchegantes abraços de Ampelos. Um belo mito que conta o romance entre duas figuras divinas masculinas, com o qual podemos compreender o amor entre dois homens como sagrado.

Sinto-me inspirado por Dionísio a caminhar pelo mundo de forma livre, sem medo de amar e ser feliz. Dionísio me ensina a lutar contra aqueles que nos oprimem, não com ódio e destruição, mas com amor e alegria. Na Wicca, encontrei a minha espiritualidade, mas, além disso, eu me encontrei. Hoje celebro os Antigos Deuses livremente, sem medo de amar e mostrar quem eu sou.