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Budismo: Relato de um cidadão gay cis

Budismo: Relato de um cidadão gay cis

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Estou no caminho budista clerical há alguns anos, mas antes disso, sou um cidadão gay cis. E essa é a história que gostaria de contar, sobre religiosidade e sexualidade.

Não é nada fácil conciliar sexualidade e religiosidade, principalmente quando ela escapa ao chamado “normal” determinado pela sociedade e ao pensamento religioso comum. Minha jornada religiosa começou cedo na Igreja Messiânica no final dos anos 80, quando eu tinha entre 14 e 16 anos, época que me despertou o questionamento sobre a vida através do exercício introspectivo religioso. Lá segui como pré-seminarista por uns dois ou três anos. Por conflitos familiares, meus pais se opuseram à carreira religiosa e parti rumo ao trajeto convencional da faculdade, porém sem um amparo espiritual. Paralelo a isso, como na vida de todo adolescente, os hormônios se manifestaram sem me alertar qual desejo seria. Estes dois movimentos, religioso e sexual, silenciosamente causavam sofrimento nos conceitos de pecado e culpa incutidos socialmente. Era um conflito interno muito grande, costumo dizer que dava curto-circuito.

Em 2002, comecei a estudar o Budismo conhecendo as escolas Zen e Nichiren, mas foi na escola Jodo Shin (tradição Terra Pura) que realmente me identifiquei, até que em 2011 expressei meu interesse na ordenação monástica na ordem Shin Otani, o qual ocorreu dois anos mais tarde. Na época perguntei ao meu mentor se a questão homossexual comprometeria minha vocação clerical, pois não eu podia trocar um desejo que trago internamente. Prontamente ele negou justificando que nos sutras (discursos atribuídos ao Buda Shakyamuni) consta o Voto do Buda Amida1Buda Amida simboliza o Dharma, a Realidade Última, o Absoluto, o Sagrado no Budismo. que abraça a todos indiscriminadamente. Mas ainda que o Budismo não tenha o conceito de criação, Deus, pecado e fertilidade, as culpas e os medos continuavam em mim de alguma forma. Até que um dia tudo mudou.

Sabe, não nos tornamos gays, nos revelamos gays. Em algum momento, a gente desenvolve essa predisposição que norteia a vida, sem que a gente a perceba. Você se percebe diferente daquilo tido como padrão e paulatinamente os sentimentos de culpa te acompanham, muitos deles provindos dos conceitos religiosos que constroem os valores sociais, ainda que você não pertença àqueles conceitos. E você assume sua identidade ou não dependendo das circunstâncias em que vive. Assumir esta identidade hoje em dia é um movimento mais fácil devido a uma série de lutas pela liberdade de expressão que aconteceram nos últimos 20 anos, além de debates públicos e na mídia sobre estes assuntos, que se tornaram cada vez mais comum, porém nem sempre foi assim. Os anos 90 foram marcados pelo início da aids, chegando a ser atribuída como castigo divino aos “entendidos”, apelido dado aos gays da época. Tudo era velado, não tinha como esbravejar o orgulho LGBTQIA+ na avenida Paulista ou andar de mãos dadas pelas ruas. O olhar de Deus era impiedoso. Hoje temos um Deus plural nas igrejas inclusivas, louvando o Senhor sob as cores do arco-íris.

Mas de volta ao meu relato, foi em 2018 junto a outros monges e praticantes budistas que resolvemos iniciar um movimento de representatividade budista na população LGBTQIA+ e vice-versa, a chamada Rainbow Sangha Budismo LGBT+, algo inovador em nosso país, porém algo já praticado em outros países. Por mais que o Budismo não tenha objeções doutrinais a esse tema e seja uma religião naturalmente inclusiva, nós achamos importante fazê-lo por dois aspectos: ser uma representatividade budista a esta população a fim de acolhê-la corretamente e ser uma visibilidade desta população no Budismo reforçando a noção inclusiva; o outro aspecto é entrar para o grupo de religiões inclusivas que se posicionam socialmente combatendo o preconceito e a intolerância, mantendo um diálogo interreligioso na diversidade sexual e de gênero e transformar a sociedade em uma cultura inclusiva e pacífica. Desde então venho atuando como clérigo abertamente gay a fim de promover a visibilidade do Budismo a essa camada da sociedade que sofre com preconceitos religiosos e romper preconceitos e paradigmas.

Acesse aqui o texto produzido pelo autor, que retrata sobre como o budismo reage às questões LGBTIQ+.


Notas

  • 1
    Buda Amida simboliza o Dharma, a Realidade Última, o Absoluto, o Sagrado no Budismo.