Quem, de fato, precisa ser curado/a? Reflexões sobre a construção do inimigo pelo heteroterrorismo
Ao tratarmos dos impactos decorrentes da construção política dos/as inimigos/as, enfrentamos as normas morais, políticas, econômicas e estéticas como produtos de um maquinário de poder que circunscreve o/a outro/a, descrito/a a partir das enunciações dessa suposta legitimidade, como uma subjetividade descartável. Tratamos, assim, de uma fabricação contínua da norma que, a partir de múltiplos braços destrutivos — heteronormatividade, cisgeneridade, moral religiosa e restritiva, brancura e demais sistemas de clivagens entre nós versus os outros —, fazem com que a corporeidade, a subjetividade, a narrativa e o afeto de sujeitos lidos como dissidentes sejam transmutados em alvos.
A belicosa disputa sobre os corpos LGBTQIA+ atende aos interesses de uma “moral restritiva” (TEIXEIRA, Inflexões éticas, p. 16), isto é, uma economia de poder que, ao gerenciar norma e exceção, apresenta corpos dissidentes como destinados, de modo imediato, a toda sorte de destruição, simbólica e objetiva. Ao compreender que a norma é desenhada para manter a descrição da vida a partir dos enquadramentos da cis-heteronormatividade, entendemos que a restrição se torna, de modo ostensivo, um projeto político.
Assim, entendemos que se a norma constrói os discursos e, mais, articula os dispositivos de poder a seu favor, isto é, designando corpos, afetos e sentidos que podem ser palatáveis, em detrimento dos que não podem, compreendemos que o discurso fabrica, por meio das ideologias supremacistas e higienistas, uma naturalização da barbárie. Logo, entendemos que os corpos lidos como dissidentes são submetidos aos processos de poder que visam a essencializar a violência e a destruição.
Nesses termos, podemos pensar se, de fato, sujeitos que vivem sob o efeito dessas estruturas radicalmente violentas precisam de “cura” ou se a moral restritiva, como força baseada na regulação e na destruição das diferenças, é o que deve ser curado de seu fetiche pela morte.
Os ideais civilizatórios que se pautam na aniquilação do outro, por considerar a cis-heteronorma como modelo inescapável e compulsório, indicam como somos herdeiros/as de uma política de extermínio que se enraíza nas instituições e que se sustenta numa ideologia da violência que, sem escusas, se beneficia da execução de corpos e afetos descritos a partir de lentes subordinadoras.
Há, nesses termos, a manutenção de um sistema de poder que, em nome da supressão da vida, realiza o que a pensadora Berenice Bento (2011, p. 551), em seu artigo Na escola se aprende que a diferença faz a diferença, compreende como “heteroterrorismo”, isto é, uma gestão multifacetada de controle e de punição que se volta contra os corpos que se descentralizam das normas que são vinculadas ao gênero e à sexualidade. Reconhecemos que não se trata de uma crítica à cisgeneridade e à heterossexualidade, mas como, por meio dos sistemas disciplinares, morais, religiosos e médico-científicos, esses modelos são tecidos como formas únicas e compulsórias de existir enquanto ser humano. O terrorismo inerente à cis-heteronorma deixa entrever a perversidade dos sistemas políticos que, de forma entrecortada, denunciam corpos LGBTQIA+, bem como outras identidades subalternizadas, para gozar de uma centralidade de poder manchada de sangue.
Entendemos, nesses termos, que não há cura para o que é apresentado, por meio dessas enunciações descritivas e belicosas, como dissidência. Compreendemos, em outro sentido, que uma conversão ética é necessária para a afirmação da vida dos sujeitos subalternizados. Essa conversão ética refuta o desejo dos sujeitos que se beneficiam da barbárie e que são capazes de comemorar as inúmeras degradações que corpos LGBTQIA+ sofrem, de diferentes modos, no Brasil, território marcado pelo consumo de corpos enunciados como os outros. É preciso, por meio dessa conversão ética, questionar o fetiche destrutivo que se esconde atrás de uma moral religiosa. Fetiche esse que, na verdade, revela quem, na verdade, precisa ser curado.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.