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Para além da cura e da medicalização – direito, justiça e vida digna na vivência da diversidade sexual e de gênero, em nome de Jesus!

Para além da cura e da medicalização – direito, justiça e vida digna na vivência da diversidade sexual e de gênero, em nome de Jesus!

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A associação entre o que são considerados desvios, anormalidades ou patologias em relação a questões de sexo, gênero e sexualidade e a ideia de cura não são novas. A compreensão e aplicação de todos esses conceitos variam histórica e culturalmente, assim como são dependentes de um conjunto de fatores políticos, econômicos e, muitas vezes, religiosos. A ideia de um padrão cis-heteronormativo não se sustenta para muito além dos conceitos elaborados na Modernidade dentro de uma perspectiva colonial, capitalista e ocidental. O que é considerado correto, aceito e respeitado em relação a sexo, gênero e sexualidade, assim como o que é entendido como doença e, por isso, necessitado de cura, precisam ser entendidos num contexto amplo de disputas e correlação de forças que determinam modelos de sociabilidade e convivência.

Eu me entendo como parte de uma geração que foi profundamente marcada pela noção de doença/cura, particularmente no que diz respeito a questões de sexo, gênero e sexualidade. Os mitos em torno da intersexualidade (ainda equivocadamente chamada de hermafroditismo) e as violentas intervenções médicas, as incontáveis recomendações (na família, na escola ou na igreja) para uma visita a um ou uma “especialista” por causa de brincadeiras ou atividades que não correspondiam às prescrições de gênero e o medo aterrorizante de que tudo isso conduzisse a uma sexualidade não heterossexual para a qual seria necessária uma intervenção mais radical, faziam (e ainda fazem) parte do imaginário desde muito cedo. As pedagogas e pedagogos, psicólogas e psicólogos, médicas e médicos, clínicas e hospitais em geral pairavam sempre como ameaça a qualquer pequeno desvio ou inadequação.

A emergência da epidemia de HIV e AIDS, associada a todo tipo de desvio sexual e moral chegando a ser caracterizada como “câncer gay” e até mesmo com o nome científico (?) de Gay-Related Immune Defficiency (GRID – Imuno Decifiência Relacionada a Gays) reforçou ainda mais esse estigma e o medo associado a ele. Como cantou Cazuza, “o [nosso] prazer agora é risco de vida”. Além de lidar com as consequências reais da epidemia que ceifou a vida de milhões do que se chamou de “comunidade gay e lésbica”, era necessário, ainda, lidar com a relação estabelecida entre um vírus e uma doença e uma identidade construída ao redor de determinadas práticas sexuais e de identidades gênero e como essa associação se imiscuía na própria subjetividade. Muita gente morreu e muita gente perdeu gente querida acreditando que, de fato, havia uma associação, em geral advinda do universo religioso que falava de “castigo divino”, mas que se manifestava em linguagem médica, entre o seu sexo, o seu gênero e/ou a sua sexualidade e a realidade de adoecerem e morrerem de uma doença que, até o momento, não figura entre aquelas “curáveis” (para aprofundamento veja Musskopf, 2020).

Há conhecimento suficiente para superar todas essas compreensões. A homossexualidade já não é considerada doença desde 1973 pela Associação Americana de Psiquiatria, desde 1993 pela Organização Mundial de Saúde e, no Brasil, desde 1999 pelo Conselho Federal de Psicologia. Muitas outras entidades e catálogos poderiam ser citados, bem como outras questões relacionadas a sexo, gênero e sexualidade (como a intersexualidade e a transexualidade, por exemplo) para evidenciar tais mudanças de compreensão. Já se sabe que o vírus HIV não tem (e nunca teve) “preferência” por sujeitos com práticas sexuais particulares e a AIDS segue produzindo dor, sofrimento e morte entre os grupos e populações mais vulneráveis que não têm acesso a informações e métodos de prevenção e tratamento. E, ainda assim, o fantasma da doença (e da cura) segue vivo e, de vez em quando, é reavivado por alguns grupos e em alguns espaços.

Susan Sontag (2007) descreveu brilhantemente como determinadas questões se manifestam como doença e são transformadas em metáforas para re/afirmar padrões morais e culturais. Os ensaios A doença como metáfora e A AIDS e suas metáforas descrevem muito bem os mecanismos que transformam uma determinada condição física ou química em eventos e situações carregados de significados que marcam e determinam o lugar e o valor de determinados sujeitos e grupos que, nas palavras de Judith Butler (1993), importam/têm valor ou não importam/não têm valor, ou cujas vidas são consideradas vivíveis e mortes lamentáveis, ou não (Butler, 2009). No contexto dessas reflexões, torna-se necessário pensar no que faz com que algo em específico seja alçado à condição de e reconhecido como doença e passível de cura. Quais são os critérios (biológicos, médicos, culturais, morais, religiosos, políticos…) que fazem com que alguém seja considerado “doente” e se estabeleçam “protocolos” para sua “cura”.

Pode parecer estranho que em meio a uma pandemia e a uma situação de crise sanitária global se questione o que configura uma doença, especialmente considerando que há uma onda negacionista em relação à sua realidade, às formas de prevenção e tratamento. No entanto, o que se questiona é justamente a forma como se lida com determinadas situações e o que faz com que elas emerjam como preocupação no campo semântico da doença/cura, especialmente quando isso acontece fora do universo de pesquisas reconhecidas pela comunidade científica. Ao olhar para a história da homossexualidade ou da diversidade sexual e de gênero em específico esse questionamento não é tão absurdo, uma vez que tais questões carregam profundamente a marca de um processo de medicalização cientificamente reconhecido produzido na Europa do século XIX.

A própria “invenção” do termo “homossexualidade” e tudo que decorre dela se deu no contexto das ciências médicas (Greenberg, 1988) definindo identidades, práticas e comportamentos analisados no marco das patologias. Não é à toa que os movimentos sociais da segunda metade do século XX recusaram o termo por essa associação substituindo, primeiro, “homossexualismo” por “homossexualidade” (numa referência à construção das identidades e à reivindicação de direitos civis) e, depois, sua abolição por completo como incapaz de expressar as realidades diversas vividas em relação ao sexo, ao gênero e à sexualidade, seus múltiplos cruzamentos e sua relação com outros marcadores sociais. Parte da emergência da Teoria ou dos Estudos Queer e dos estudos da diversidade sexual e de gênero está relacionada com a superação dessa perspectiva devedora de uma ciência médica higienista e profundamente marcada por uma tradição moral formada no campo de um cristianismo imperialista.

Tal herança medicalizadora é tão forte que, não raro, ela aparece no contexto da própria luta contra preconceitos, discriminação e violência contra pessoas LGBTQIA+. Em 2012, por exemplo, a Parada do Orgulho LGBT de São Paulo, a maior do seu tipo no mundo inteiro, teve como tema “Homofobia tem cura: Educação e criminalização”. Como o próprio subtema – educação e criminalização – permite perceber, não se tratava da reivindicação do reconhecimento de uma enfermidade, mas da transformação cultural e da responsabilização por atos de violência motivados por questões de orientação sexual e identidade de gênero. Em defesa do tema, poder-se-ia argumentar que a reivindicação da “cura”, nesse caso, representava uma estratégia discursiva e política característica dos estudos e dos movimentos queer de usar “as categorias construídas através da medicalização […] contra elas mesmas (Stein; Plummer, 1996). Ainda assim, tal evocação não deixa de ser perigosa, como foi apontado por muitas críticas, uma vez que a homofobia não se constitui no campo das patologias, mas é resultado de processos históricos e culturais (Borrillo, 2010).

A ideia de relacionar determinadas questões sociais ao universo da doença/cura parece ser uma estratégia comum quando se quer reivindicar uma ainda atuante autoridade supostamente inquestionável do campo das ciências médicas (incluindo as ciências psi). É assim que se utiliza termos como “louco” ou “doente” ou “pervertido” para se referir a indivíduos que praticam os mais variados crimes e violências que podem ir desde diversos tipos de corrupção, violências e maus tratos até discursos e posturas escandalosamente contrárias a um senso comum básico daquilo que é socialmente tolerável em um dado contexto. Elementos e questões de gênero e sexualidade associadas à personalidade desses indivíduos sem dúvida potencializam essas associações, inclusive relacionando atos violentos a um determinado tipo de masculinidade ou algumas posturas ininteligíveis à irracionalidade de um determinado tipo de feminilidade. É como se esses (poucos) indivíduos assumissem feições monstruosas por passarem (um pouco) do ponto na demonstração de seus atributos de gênero, no geral valorizados e promovidos culturalmente como ideais de “homem” e de “mulher”.

Como apontado, tais associações não deixam de ser arriscadas, uma vez que mantêm viva a ideia de medicalização de determinados sujeitos, cuja consequência tem sido a proposição de tratamentos de cura que favorecem a situação de poder de determinadas instituições e práticas que apenas reforçam o estigma e a exclusão (por questões de gênero e sexualidade, mas também por questões de classe social, raça e etnia). Isso é ainda mais perigoso num contexto de economia de mercado na qual questões relacionadas à saúde (e à doença) têm beneficiado grupos econômicos que lucram com tais tratamentos, especialmente indústrias farmacêuticas e serviços privados de saúde, incluindo o crescente número de clínicas e casas de recuperação mantidas por grupos e indivíduos com filiação religiosa. Em todos esses casos, é fundamental uma análise crítica das diversas questões implicadas na história social de determinadas doenças e das propostas de intervenção para cura.

Os discursos e perspectivas religiosas acionadas em propostas de cura relacionados à homossexualidade ou, de maneira mais ampla, a questões de diversidade sexual e de gênero, explicitam de modo irremediável esses riscos. Nunca faltará um médico ou uma médica, um psicólogo ou uma psicóloga, um ou uma cientista para defender teses sobre o caráter patológico do que consideram equivocado do ponto de vista moral e religioso, ainda que tais teses não se sustentem ou não sejam reconhecidas pela comunidade científica ou política mais ampla. Seu apelo e sua capacidade de mobilização estão justamente em seu apelo moral que responde a determinadas compreensões e sentimentos social e culturalmente construídos e geram adesão por determinados grupos sociais.

A capacidade mobilizadora dos discursos religiosos em relação a questões morais no âmbito das questões de gênero e sexualidade e sua relação com a semântica e a realidade de doença/cura faz parte de processos históricos nos quais as religiões desempenharam e desempenham um papel importante em relação à saúde. A recusa ou negação de determinadas compreensões advindas de outros campos (como das ciências médicas, por exemplo) representa tanto a incapacidade de muitas dessas áreas do conhecimento de incorporarem as experiências religiosas dos indivíduos e grupos sociais, quanto, em muitos casos, a própria carência e impossibilidade de acessar os benefícios produzidos por elas. Nesse sentido, a religião, historicamente, tem suprido uma lacuna ao oferecer significados a determinadas realidades que causam dor e sofrimento, assim como oferecer formas concretas de lidar com elas e promover alívio.

No âmbito cristão, as curas e milagres performadas por Jesus e descritas nos textos sagrados do que é comumente conhecido como Novo Testamento oferecem um modo de leitura e atuação que podem ser úteis tanto para o campo religioso quanto para o campo social mais amplo. Se é verdade que tais narrativas de cura se referem fundamentalmente a processos de reintegração social e superação de estigmas de pessoas excluídas de suas comunidades (Reimer, 2021), há aí um questionamento profundo para a forma como são acionados os dispositivos de doença/cura na atualidade, particularmente quando se trata de questões de gênero e sexualidade. A pergunta que se coloca é justamente pelo significado social (e religioso) que determinadas condições físicas e comportamentais que marcam as experiências e identidades dos sujeitos assumem e o tratamento dispensado a eles a partir desses significados no contexto social (e religioso).

Em um artigo publicado na Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana dedicado ao tema da cura, refleti sobre uma dessas narrativas e suas implicações para as questões de diversidade sexual e de gênero no âmbito da própria religião (Musskopf, 2004). A partir do estudo de Theodore W. Jennings Jr. (2003), analisei o texto que se encontra em Mateus capítulo 8 versículos 5 a 13. A narrativa descreve a busca desesperada de um soldado romano (centurião) pela cura de seu “criado/moço” e que o leva até Jesus. Vários elementos presentes no próprio texto e uma leitura contextualizada dele a partir de métodos hermenêuticos específicos (leitura popular da Bíblia, hermenêutica feminista e queer), permitem suspeitar e reconhecer uma relação de amor e afeto entre esses dois personagens.

A grande surpresa – e o grande ensinamento – dessa narrativa pode ser, então, o reconhecimento e a cura (física e social) não apenas do que é apresentado como doença física do rapaz que está “em casa, de cama, paralítico, sofrendo horrivelmente”. A cura pode ser vista, também, como o reconhecimento da própria relação dele com aquele que vai em busca do alívio do sofrimento e deles com a sua comunidade, superando, inclusive, o sentimento de “indignidade” expresso pelo soldado romano que afirma não ser “digno de que entres em minha casa”. Aí, a vivência das questões de gênero e sexualidade para além do padrão cis-heteronormativo não serão mais o foco de atenção de quem prega e defende a cura através da medicalização de tais experiências e identidades, mas a promoção do direito, da justiça e da vida digna para todas as pessoas em sua diversidade sexual e de gênero. Em termos religiosos, se poderá dizer que “nem mesmo em Israel achei fé como essa”, em nome de Jesus!


Referências

BORRILLO, Daniel. Homofobia – História e crítica de um preconceito. Trad. Guilherme João de Freitas Teixeira. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

BUTLER, Judith. Bodies that matter – On the discursive limits of ‘sex”. New York, Routledge, 1993.

 VEJA TAMBÉM
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BUTLER, Judith. Vida precária – El poder del duelo y la violência. 1ª ed. 1ª imp. Trad. Fermín Rodríguez. Buenos Aires, Paidós, 2009.

GREENBERG, David F. The construction of homosexuality. Chicago: The University of Chicago Press, 1988.

JENNINGS JR., Theodore W. The man Jesus loved – Homoerotic narratives from the New Testament. Cleveland: Pilgrim, 2003.

MUSSKOPF, André S. Bíblia, cura e homossexualidade. Ribla, v. 49, 2004, p. 93-107.

MUSSKOPF, André S. Nem santo te protege – Aids, teologia e religião de bolso. Belo Horizonte: Editora Senso, 2020.

REIMER, Ivoni Richter. Milagre das mãos: curas e exorcismos de Jesus em seu contexto histórico-cultural. 2ª. ed. E-book. São Leopoldo: Oikos; Goiânia: UCG, 2021.

SONTAG, Susan. Doença como metáfora; AIDS e suas metáforas. Trad. Rubens Figueiredo/Paulo Henrique Britto. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

STEIN, Arlene; PLUMMER, Ken. “I can’t even think straight” – Queer Theory and the missing sexual Revolution in sociology. In: SEIDMAN, Steven (ed.). Queer Theory/Sociology. Oxford: Blackwell, 1996. p. 129-144.