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Afinal, o que estão dizendo quando falam em ‘cura gay’?

Afinal, o que estão dizendo quando falam em ‘cura gay’?

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A história das iniciativas que pretendem ‘reorientar a homossexualidade’ remonta a mais de cem anos e prossegue ativa no início do século XXI – como componente importante do que compreendemos como processo de ‘patologização-despatologização-repatologização’ da homossexualidade (“Cura gay”: linha do tempo). Tal atividade persiste, a despeito de inúmeras transformações e conquistas no campo dos direitos civis, especialmente em questões de direitos sexuais e reprodutivos – sobretudo para os grupos tidos como minoritários, mulheres e a população gay, lésbica, bissexual, travesti e transexual (LGBT)1Ver Rodrigues (2014) sobre a constituição desse sujeito coletivo no âmbito Estatal., que através de disputas e mobilizações têm adquirido mais visibilidade e assegurado direitos e garantias jurídicas, políticas, sociais e culturais, principalmente nas últimas três décadas.

O modo como se apresentam e operam as práticas que aspiram transformar homossexuais em heterossexuais; os sentidos que essas práticas portam; bem como os efeitos e resistências que produzem também se modificam ao longo do tempo. Tais atividades recebem diferentes designações como o de terapia reparativa, terapia de conversão, cura da homossexualidade, “reorientação sexual de homossexuais”, “grupo de terapia reparativa” ou “ministérios de ex-gays” (DEAN; LANE, 2001, p. 3) e mais recentemente se destaca o uso da categoria ‘cura gay’ no Brasil.

Eventualmente, a alternância do uso e a circulação dessas categorias por diferentes atores e contextos – nas redes sociais digitais, por segmentos da opinião pública, pelo ambiente acadêmico, profissional, midiático, político, religioso etc. – produza o ‘equívoco’ de que uma expressão substitua a outra no decorrer desse processo ou, até mesmo, de que determinada categoria tenha adquirido mais legitimidade e reconhecimento junto ao campo científico e ao mainstream profissional – como por exemplo, no caso da “terapia reparativa”, que nos anos de 1990 conquistou notoriedade nos Estados Unidos e alçou seu criador, o psicólogo Joseph Nicolosi (1947-2017), ao estrelato televisivo naquele país (WAIDZUNAS, 2015). Embora, de fato, o uso dessas diferentes categorias coexista, a despeito da prevalência e destaque de uma ou outra designação, conforme a conjuntura e o interlocutor. Tal substituição terminológica não ocorre casualmente, dentre outros aspectos, também opera estrategicamente como maneira de ‘driblar’ o próprio movimento LGBT  e os Conselhos de Psicologia, ao mesmo tempo em que divulga atividades condenáveis sob a perspectiva dos Direitos humanos e do consenso  de reconhecimento e respeito à diversidade sexual2Destacamos os posicionamentos oficiais sobre esse tema estabelecidos por organismos nacionais e internacionais; bem como por organizações científicas e profissionais, particularmente a Organização Mundial da Saúde (OMS); a American Psychological Association (APA); o Conselho Federal de Psicologia (CFP); o Conselho Nacional de Saúde (CNS); e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA). – tal como no caso do uso do termo “reorientação cultural”, como já anunciado pela psicóloga paranaense Marisa Lobo3Marisa Lobo é psicóloga, evangélica vinculada à igreja Batista Bacacheri de Curitiba. para designar um dos seus cursos (MACEDO, 2017). Porém, embora a discussão sobre a validade das ‘terapias de reorientação’ possa ganhar visibilidade e ocasionar dúvidas na esfera pública, no meio científico essa prática tem sido relegada às margens, assim como a ufologia e a psicologia paranormal (WAIDZUNAS, 2015).

Não obstante se apresentem de maneiras variadas, essas categorias são empregadas, em sua grande maioria, para recobrir o fenômeno de ‘práticas terapêuticas de reorientação sexual’ que frequentemente diferem em sua ênfase sobre os fatores psicológicos e a fé religiosa, mas, em geral, compartilham a convicção de que a homossexualidade seja indesejada, um sinal de imaturidade e “disfunção” de gênero, sendo assim passível de superação e “reorientação” à heterossexualidade (DEAN; LANE, 2001, p. 33), em suma, sempre partem do pressuposto de que a homossexualidade seja um defeito ou um pecado (FORD, 2001, p. 71). Terapias para mudar a orientação sexual se desenvolveram principalmente a partir de crenças morais e patológicas sobre a homossexualidade, ao invés de uma curiosidade teoricamente neutra sobre a fluidez do desejo erótico humano (SHIDLO, 2001, p. 167). Assim como a própria existência dessas ‘terapias’ são encaradas por muitos como algo para desvalorizar o estilo de vida de pessoas que têm a identidade gay ou lésbica (WAIDZUNAS, 2015). Outro argumento em voga nos Estados Unidos, bem como no Brasil, é a concepção de que a homossexualidade é um comportamento escolhido, portanto, passível de ser desfeito (ibidem, p. 6).

No Brasil na última década uma das formas mais recorrentes por meio da qual esse fenômeno adquiriu publicidade foi através da exploração da categoria ‘cura gay’ em controvérsias públicas sobre a contestação do reconhecimento da legitimidade da homossexualidade. Essa manifestação, contribui para a construção ou a reatualização, em determinados segmentos, do imaginário de que homossexuais necessitam de ‘cura’. Porém, não se restringem a isso, pois a questão da ‘cura gay’, diferente do que eventualmente pareça, extrapola a mera prática que alega ‘reorientar os dissidentes’ à heterossexualidade em âmbito clínico ou religioso, trata-se de um fenômeno sobretudo político – que contempla manifestações contemporâneas de verdadeiro “rechaço à homossexualidade” (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2013).

Se por um lado, ‘Cura gay’ possui a capacidade de chiste ao induzir o riso através da disseminação de memes e anedotas, também propõe ridicularizar e denunciar seus entusiastas como categoria de acusação. Por outro lado, tal categoria se trata de artifício discursivo que evidencia um mal-estar recorrente por parte de diferentes atores – como líderes religiosos, grupos políticos e segmentos da psicologia – com a normalização da homossexualidade. Na análise desse último caso em específico, a  utilização do termo ‘cura gay’ se dá, sobretudo, como categoria de investigação por parte de quem pesquisa, discute, contesta, interroga ou estranha esse tipo de referência – como  pesquisadores do campo das ciências sociais e psicologia (NATIVIDADE; OLIVEIRA, 2013; TEIXEIRA, 2014; MACHADO, M., 2017; MACEDO; SÍVORI, 2018, 2019; GAMA, 2017, 2019; GONÇALVES, 2019); psicólogos engajados com a defesa dos direitos humanos e das liberdades individuais, especialmente as últimas gestões dos Conselhos de Psicologia; além de grande parte da imprensa nacional4No país há quase uma década, órgãos de imprensa de grande circulação publicam matérias com chamadas em que no próprio título se destaca a expressão ‘cura gay’ e o debate sobre essa questão. Além de colunas, notícias e reportagens que, se não apresentam ‘cura gay’ em destaque, fazem menção ao termo ou o abordam de forma crítica no conteúdo dos respectivos textos. Para ficar em alguns exemplos, Folha de São Paulo em 01/03/2012, A “cura gay’; Estadão em 03/05/2013, Conselho de psicologia critica discussão de ‘cura gay’; O Globo em 11/06/2017, Tratamentos de ‘cura gay’ ainda são ameaça a homossexuais; Revista Veja em 21/09/2017, Autora de ação da cura gay comparou ativistas a nazistas; Revista Época em 22/03/2019, “Cura gay” ou sublimação do desejo?; Folha de São Paulo em 11/07/2019, ‘Cura gay’ não é psicoterapia, é condução de almas, diz psicanalista;  Correio Braziliense em 17/03/2020,  STF mantém suspensa decisão que autorizava terapia de “cura gay”., que na atualidade, em grande parte, tem se posicionado favorável ao reconhecimento da diversidade sexual5Em contraste ao discutido por Valle (2002), dentre outros pontos, sobre o papel da imprensa na construção de representações culturais da AIDS e dos discursos em que a epidemia é capturada na década de 1980., assim como seus congêneres nas demais democracias liberais mundo afora. Atualmente ‘cura gay’ também é a denominação recorrente com que o tema tem circulado pelas redes sociais digitais – Facebook, Twitter e Youtube – como categoria que ora sintetiza de forma imprecisa a complexidade desse debate, ora catalisa a própria discussão. Sem deixar de mencionar a onipresença dessa expressão nas manifestações de rua de 2013, que possuíam pautas políticas difusas, dentre elas a contestação à ‘cura gay’, que nessa ocasião era, em grande medida, também associada à atuação do Deputado Pastor Marco Feliciano (PSC-SP), à época, à frente da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara (CDHM) por onde tramitava o PDC 234/116Projeto de autoria do Deputado João Campos (PSDB), apresentado em 02/06/2011, que propõe sustar a aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/1999 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Disponível em http://www.camara.gov.br/ Acessado em 21/04/2015. (TEIXEIRA, 2014; GAMA, 2019), esses eventos tiveram destaque por parte da imprensa.

Após esse breve panorama sobre a discussão da chamada ‘cura gay’ na atualidade, reiteramos que a encenação pública de um debate que veicula argumentos pseudocientíficos que reconduzem a homossexualidade para o território do patológico só adquirem sentido se analisados como parte de um cenário maior, que constela a política sexual como questão de peso em processos políticos que afetam a democracia brasileira como um todo (MACEDO, SÍVORI, 2018).


Referências

DEAN, Tim; LANE, Christopher. Homosexuality and psychoanalysis: an introduction. In: DEAN, Tim; LANE, Christopher (Ed.). Homosexuality and Psychoanalysis. Chicago: The University Of Chicago Press, 2001. p. 04-42.

FORD, Jeffry G.. Healing homosexuals: a psychologist’s journey through the ex-gay

movement and pseudo science of reparative therapy. In: SHIDLO, Ariel; SCHROEDER,

Michael; DRESCHER, Jack. Sexual research therapy: ethical, clinical and research

perspectives. New York: The Haworth Press, 2001. p. 69-86.

GAMA, Maria Clara Brito da. Criminalização da homofobia e despatologização da homossexualidade no Congresso Nacional, da redemocratização à atualidade. 2017. 266 f. Tese (Doutorado) – Curso de Programa de Pós- Graduação em Sociologia, Instituto de Estudos Sociais e Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

GAMA, Maria Clara Brito da. Cura Gay? Debates parlamentares sobre a (des)patologização da homossexualidade. Sexualidad, Salud y Sociedad (Rio de Janeiro), [S.L.], n. 31, p. 4-27, abr. 2019.

GONÇALVES, Alexandre Oviedo. Religião, política e direitos sexuais: controvérsias públicas em torno da “cura gay”. Religião & Sociedade, [S.L.], v. 39, n. 2, p. 175-199, ago. 2019.

MACEDO, Cleber Michel Ribeiro de. A “clínica pastoral” dos psicólogos cristãos no Brasil. 2017. 122 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Instituto de Medicina Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

MACEDO, Cleber Michel Ribeiro de; SÍVORI, Horacio Federico. Repatologizando a homossexualidade: a perspectiva de “psicólogos cristãos” brasileiros no século XXI. Estudos e Pesquisas em Psicologia, Rio de Janeiro, v. 4, n. 18, p. 1415-1436, jul. 2018.

 VEJA TAMBÉM
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MACEDO, Cleber Michel Ribeiro de; SÍVORI, Horacio Federico. The Sexual Diversity Debate in Brazilian Psychology: professional regulation at stake. Psicologia: Ciência e Profissão, [S.L.], v. 39, n. 3, p. 88-102, 2019.

MACHADO, Maria das Dores Campos. Pentecostais, sexualidade e família no Congresso Nacional. Horizontes Antropológicos, [s.l.], v. 23, n. 47, p.351-380, abr. 2017.

NATIVIDADE, Marcelo; OLIVEIRA, Leandro. As novas guerras sexuais: diferença, poder religioso e identidades LGBT no Brasil. Rio de Janeiro: Garamond, 2013.

RODRIGUES, Silvia Aguião. Fazer-se no “Estado”: uma etnografia sobre o processo de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no brasil contemporâneo. 2014. 340 f. Tese (Doutorado) – Curso de Ciências Sociais, Instituo de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.

SHIDLO, Ariel et al. Sexual research therapy: ethical, clinical and research perspectives. New York: The Haworth Press, 2001.

TEIXEIRA, Natália Beatriz Viana. “Cura gay é o meu caralho!”: a normalização da homossexualidade e a resolução cfp 1/99. 2014. 174 f. Dissertação (Mestrado) – Curso de Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2014.

WAIDZUNAS, Tom. The straight line: How the fringe science o ex-gay therapy reoriented sexuality. Minneapolis: University Of Minnesota Press, 2015. 321 p.


Notas

  • 1
    Ver Rodrigues (2014) sobre a constituição desse sujeito coletivo no âmbito Estatal.
  • 2
    Destacamos os posicionamentos oficiais sobre esse tema estabelecidos por organismos nacionais e internacionais; bem como por organizações científicas e profissionais, particularmente a Organização Mundial da Saúde (OMS); a American Psychological Association (APA); o Conselho Federal de Psicologia (CFP); o Conselho Nacional de Saúde (CNS); e a Associação Brasileira de Antropologia (ABA).
  • 3
    Marisa Lobo é psicóloga, evangélica vinculada à igreja Batista Bacacheri de Curitiba.
  • 4
    No país há quase uma década, órgãos de imprensa de grande circulação publicam matérias com chamadas em que no próprio título se destaca a expressão ‘cura gay’ e o debate sobre essa questão. Além de colunas, notícias e reportagens que, se não apresentam ‘cura gay’ em destaque, fazem menção ao termo ou o abordam de forma crítica no conteúdo dos respectivos textos. Para ficar em alguns exemplos, Folha de São Paulo em 01/03/2012, A “cura gay’; Estadão em 03/05/2013, Conselho de psicologia critica discussão de ‘cura gay’; O Globo em 11/06/2017, Tratamentos de ‘cura gay’ ainda são ameaça a homossexuais; Revista Veja em 21/09/2017, Autora de ação da cura gay comparou ativistas a nazistas; Revista Época em 22/03/2019, “Cura gay” ou sublimação do desejo?; Folha de São Paulo em 11/07/2019, ‘Cura gay’ não é psicoterapia, é condução de almas, diz psicanalista;  Correio Braziliense em 17/03/2020,  STF mantém suspensa decisão que autorizava terapia de “cura gay”.
  • 5
    Em contraste ao discutido por Valle (2002), dentre outros pontos, sobre o papel da imprensa na construção de representações culturais da AIDS e dos discursos em que a epidemia é capturada na década de 1980.
  • 6
    Projeto de autoria do Deputado João Campos (PSDB), apresentado em 02/06/2011, que propõe sustar a aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/1999 de 23 de Março de 1999, que estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Disponível em http://www.camara.gov.br/ Acessado em 21/04/2015.