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O sangue das mulheres: o diálogo hindu-cristão

O sangue das mulheres: o diálogo hindu-cristão

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Eu sou uma mulher
e o sangue dos meus sacrifícios
clama pelo céu
o qual vocês chamam de paraíso.
Estou farta dos seus sacerdotes
que nunca sangram
e ainda dizem:
Este é meu corpo
partido por vós
e esse meu sangue
derramado por vós
bebei-o.
Que sangue
tem sido derramado
pela vida
desde a eternidade?
Estou farta dos seus sacerdotes
que regulam o Garbhagriha*
que adoram o ventre
como a fonte da vida
e continuam me fazer gritar
porque meu sangue
é poluidor.
Eu sou uma mulher
e meu sangue
clama.
Somos milhões
e juntas, fortes.
é melhor vocês nos ouvir
ou vocês podem ser condenados.

(Gabriele Dietrich)

A mulher sangra. Todo mês. Toda semana. Todos os dias. Alguma mulher sangra. Esse sangue emana do seu corpo, dos seus orifícios, das suas lágrimas e suores. A mulher sangra em seu coração, que através das inúmeras exclusões sofre. A mulher sangra na cama – marca da santidade ou marca da promiscuidade. A mulher sangra parindo: parindo existências humanas, divinas e utópicas. A mulher sangra por não parir: sangue mensal da destruição e renovação ou sangue do aborto doloroso. A mulher sangra com a violência, racismo e controle: sangra até morrer. A mulher sangra. Não por opção!

Dois de janeiro de 2019. Duas mulheres desafiam toda uma tradição religiosa patriarcal: Bindu, 40 anos e professora de direito, e Kanakadurga, 39 anos e funcionária pública, são as primeiras mulheres a entrarem no templo Lord Ayyapa em Sabarimala, no estado de Kerala, Índia. As mulheres em período fértil eram proibidas de entrar no templo. Não aguentando mais as opressões, mulheres indianas deram as mãos e formaram um cordão humano em protesto contra a exclusão das mulheres no espaço sagrado.

Nosso corpo, nosso sangue, nossa voz ofende. Nosso corpo é um templo. Nosso sangrar é divino. Nossa sororidade é espiritual de uma maneira que religiosos intolerantes nunca irão compreender. O cristianismo não cansa de banir as mulheres do espaço sagrado, do serviço sagrado. Dessa forma, damos as mãos a nossas companheiras hindus, entrando em um cordão humano espiritual, para que nosso corpo vivencie a fé de maneira plena. Impedir a entrada do templo, impedir a ordenação feminina, impedir o sangue fluir em nossas veias e corpos é impedir a entrada do divino. O divino, em suas diversas formas e nomes, habita em nós. Cristo, Durga, Maria, Saraswati, Kali, Lakshmi, Ruah, Parvathi, Shekinah, Sophia**. O véu foi rasgado. Nós adentramos na casa de Deus dançando com os pés de lótus de Kali. Abrindo janelas, portas, ventilando com o sopro divino da Ruah. Oferecendo o fogo santo no altar***, consagrando o pão e o vinho.

A teologia feminista deve ser enraizada no diálogo inter-religioso. Deve dar as mãos às nossas irmãs de outras crenças e credos, e construir uma espiritualidade no corpo, para o corpo e do corpo. É impossível pensar uma teologia feminista libertadora que não seja plural, que não seja inter-religiosa, que não seja pós-colonial. Da mesma maneira, um diálogo inter-religioso que não lide com as questões da realidade e foque apenas na metafísica das crenças é apenas manter o status quo das tradições patriarcais – diálogo esse feito por homens e para homens. A dinâmica da teologia feminista é dialógica, é inter-religiosa, destrói mundos antigos e constrói mundos novos, espiritualidades vivas e vividas no cotidiano. Nossos sangues e corpos se fundem em um só. Somos mulheres. Somos espirituais. Somos unidas na luta para vivenciarmos nosso corpo e nossa fé.

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Notas

* Santuário dos templos hindu.
**Deusas das tradições hindu: Durga, Saraswati, Kali, Lakshmi, Parvathi. Nomes divinos femininos da tradição judaico-cristã: Ruah, Shekinah, Sophia. Divindades do cristianismo: Cristo e Maria.
***Arati: ritual em que é oferecido o fogo, em velas de ghee (manteiga), para as deidades no altar. Pão e vinho: Eucaristia e/ou santa ceia na tradição cristã.