O Sagrado dos Corpos Marginais
O corpo é uma experiência da existência. Através dele nós habitamos no mundo, significamos e somos significados. Ele é meio pelo qual as nossas sensações são vividas. Nós o compreendemos como uma porta que se abre para o humano e também para o sagrado.
Inegavelmente, sobretudo em nosso contexto social e político, alguns corpos são lidos e construídos à margem. A eles, de modo inconteste, são negados direitos fundamentais. Sua realidade é condicionada ao escondimento, a uma interpelação violenta e a determinação objetal. Numa dinâmica violenta e pouco empática, os corpos que se prostituem são lidos de uma forma deslegitimada e fetichizada.
Aparentemente, no ato do gozo e do interesse sexual, aquele indivíduo é apartado de sua identidade como sujeito. Logo, ele é colocado à margem, inclusive, do sagrado, pois, numa compreensão hegemônica, aquela prática é profana.
Nossa questão está exatamente nesse lugar tensional entre o sagrado e o profano dos corpos marginais. Sendo assim, a nossa maior pergunta é: há possibilidade de uma prostituta experimentar o Divino? Essa interrogação fulcral nos direciona a outra: é possível que ela perceba que o seu corpo não é hostilizado num templo religioso, na mesma medida que o é, fora dali? Essas duas questões nos fazem pensar no Direito ao Culto Religioso e também no Direito a ser Humano.
Claramente, aqui, lidamos com um problema que chamamos, orientados por Butler, de enquadramento. Isto significa que alguns corpos e existências são colocados no limite de um reconhecimento positivo e outros não. Pensamos que a experiência do Sagrado, por vezes, é requisitada por corpos que não se entendem ou não são compreendidos como marginais. Eles reivindicam a fé como algo restrito, intocável e intransponível.
Pensamos, ao contrário: é preciso romper com essa estrutura e ampliar as perspectivas de reconhecimento. Todos os corpos podem e devem ter seus direitos resguardados, inclusive o de acreditar e acessar o Sagrado.
Compreendemos que o Candomblé, por exemplo, importante Religião de matriz africana é, desde sempre, uma manifestação religiosa que abraça ao que, de modo injusto, são excluídos e apartados dos lugares sociais privilegiados. Sua força e resistência indicam que para além da vivência dos Orixás, Voduncis e Nkisis, está uma força política e de afirmação da existência de minorias políticas.
Atemo-nos aqui perspectiva de Karol ty Osum, iniciada no Candomblé, praticante da Religião e vinculada ao Axé Oxumaré. Para ela o filho de santo, ao ingressar na religião, “apreende o que certo e o que é o errado” naquele contexto de fé. Além disso, “a Religião não condenará ninguém pelo seu trabalho”. Entendemos que, quando o filho se torna um Omorixá ele é iniciado e aprende sobre a conduta e os valores que o integram naquele culto e o aproximam do sagrado: “há regras que você tem que seguir como existem como em todas as religiões.” Esse espaço do culto é aberto a todos os corpos.
É importante salientar que, durante os rituais que se orientam a fortalecer o elo com os Orixás todos — independente da profissão que exercem fora do Ilê —, são convidados a manter o corpo e a mente entregue ao Sagrado. Segundo, Karol d’Oxum, por exemplo, nesses momentos “não se trabalha com o corpo”.
Entendemos que os corpos que se prostituem, no Candomblé, logram da possibilidade ao culto. Não há estigma que os vetem de participar, com dignidade, do cotidiano da Religião. O que se faz fora das Casas de Santo não importa, uma vez que ali dentro a força do Sagrado nivela a todos. Aqui são requisitados os valores como fraternidade e comunidade. Nesse sentido, não importa o que se faz fora do Ilê se, lá dentro, os corpos estão a serviço do Sagrado.
Referências
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
SANTOS, Erisvaldo Pereira dos. Formação de professores e religiões de matrizes africanas: um diálogo necessário. Belo Horizonte: Nandyala, 2016.
Professor do Departamento de Filosofia da PUC Minas. Professor da Plataforma Feminismos Plurais. Mestre em Filosofia pela FAJE. Doutorando em Ciências Sociais pela PUC Minas. Autor do livro Inflexões éticas. Colunista da Revista Senso. E-mail: thiagoteixeiraf@gmail.com.