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Justiça reprodutiva: uma discussão dos direitos sexuais e reprodutivos a partir da perspectiva da mulher negra

Justiça reprodutiva: uma discussão dos direitos sexuais e reprodutivos a partir da perspectiva da mulher negra

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Quando ouvimos a expressão Direitos sexuais e reprodutivos, imediatamente pensamos na legalização do aborto, uma vez que esta é a pauta mais polêmica implicada nesta discussão. A mulher poder escolher sobre seu corpo, decidindo sobre ser mãe, ou não, com certeza é pauta importantíssima deste debate. É uma questão de saúde pública, ainda mais sendo as complicações decorrentes de aborto a quarta causa de morte materna, em nosso país.  Contudo, não se pode resumir a discussão de direitos sexuais e reprodutivos à legalização do aborto, ainda mais quando se trata de mulheres negras.

E é a partir da articulação de gênero, raça e classe que as mulheres negras pautam a questão da justiça reprodutiva. Em outras palavras, as condições sociais das mulheres são essenciais no exercício dos seus direitos. Assim, para que elas possam acessar seus direitos sexuais e reprodutivos, é necessário que haja justiça social. Deste modo, a justiça reprodutiva é um conceito que olha para os direitos sexuais e reprodutivos de forma ampliada, uma vez que articula direitos humanos e sociais ao debate de saúde reprodutiva das mulheres.

Então, a partir do lugar de mulher negra não se pode discutir esse tema sem considerar que fomos estupradas durante os mais de 300 anos de escravização brasileira e isso naturalizou o corpo da mulher negra como um objeto sexual de satisfação dos desejos dos homens brancos. Fomos as amas de leite dos filhos da casa grande, enquanto os nossos filhos  passavam fome na senzala. Nunca tivemos, no Brasil, direito à maternidade digna e vemos nossos filhos serem assassinados a cada 23 minutos pelo terrorismo de Estado.

Neste momento, existem muitas mães e avós chorando as perdas de seus filhos e netos. No primeiro semestre de 2020, 75% das mulheres assassinadas no Brasil, eram negras. A negligência médica contra as mulheres negras durante o pré-natal é gritante. Conforme dados do Ministério da Saúde (2014), existe uma diferença no atendimento às mulheres negras: estas recebem menos tempo de atendimento médico do que as mulheres brancas e compõem 60% das vítimas da mortalidade materna no Brasil. Somente 27% das mulheres negras tiveram acompanhamento pré-natal, ao contrário das brancas que somam 46,2%. Além de outras desigualdades como menor oferta de anestesias e informações pós-parto, como orientações sobre o aleitamento materno.

Mesmo quando se trata da questão do aborto, as mulheres negras são as maiores vítimas da criminalização. Segundo uma reportagem publicada pela Folha de São Paulo1https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/no-brasil-aborto-vitima-mais-mulheres-negras-do-que-brancas.shtml, em novembro de 2020, apontou dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) que mostram que a morte de mulheres negras é o dobro da morte de mulheres brancas, em decorrência de abortos inseguros e diz, ainda, que o perfil da mulher que mais aborta no Brasil, é é o de uma jovem de até 19 anos, negra e já com filhos.

Para além desses dados, o aborto para mulheres negras tem outra tônica, segundo Angela Davis, em Mulheres, Classe e Raça:

“Quando as mulheres negras e latinas recorriam ao aborto em tão grande número, as histórias que contavam não eram sobre o seu desejo de se verem livre das suas gravidezes, mas antes sobre as miseráveis condições que as dissuadiam de trazer novas vidas ao mundo.”

[…]

“os direitos ao aborto são fundamentais para as mulheres e a democracia. Mas eles não podem ser considerados separadamente de outros direitos reprodutivos, como o de ser livre do abuso da esterilização, do direito de ter filhos. Também não se pode assumir que uma vitória nesse campo para as mulheres ricas, que são capazes de arcar com os custos do aborto, seja uma vitória para as pobres”, DAVIS, 2016, )

Na década de 1990, a deputada Benedita da Silva presidiu uma CPI da esterilização em massa no Brasil, na qual o movimento negro e grandes organizações de luta pelos direitos das mulheres negras, como o Instituto Geledès, apuraram que no Brasil a laqueadura era usada nas campanhas como forma de combate à pobreza, e como uma maneira eugênica de lidar com a falta de acesso de planejamento familiar das camadas populares, nas quais as mulheres negras foram as mais submetidas a esses procedimentos de esterilização. Ora, como pode ser uma política de Estado esterilizar os corpos das mulheres negras, sem informação de qualidade, acompanhamento da saúde dessas mulheres e, principalmente, com uma política de distribuição de renda.

Ainda como Davis, disse, mulheres pobres, na maioria pretas, abortam porque não podem sustentar mais filhos, porque estão na extrema pobreza. E isso tem impacto nas escolhas dessas mulheres, então não dá para não pensar nas relações econômicas implicadas no exercício dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres negras. Por outro lado, ainda quando pensamos a escravização das pessoas negras, quanto mais filhos as mulheres negras tinham, mais propriedades os senhores de escravos tinham, mais negras e negros para serem vendidos. A cultura de ter muitos filhos é herança direta da escravização, mais filhos, mais lucro. Ou seja, a esterilização em massa que se mostrava uma maneira de evitar filhos indesejados, é, na verdade, um artifício para não dar informação e autonomia para as mulheres, por meio de educação sexual nas escolas e acesso ao planejamento familiar no sistema de saúde básica.

E por que não dar condições das mulheres decidirem sobre seus corpos e infligir a elas a esterilização, como fizeram no Brasil, em vários países da América Latina, e recentemente, com imigrantes latinas nos Estados Unidos? Porque dar informação à mulher e direito de decidir sobre seus corpos é dar autonomia que não interessa ao Capitalismo. Vejamos: a quem interessa que milhares de adolescentes negras pobres tenham filhos e que se perpetuem na pobreza, tendo, ao longo de suas vidas, vários filhos, senão ao Capital que vai explorar a preço de miséria a mão de obra desses filhos nascidos na pobreza?

Nestes termos, Justiça Reprodutiva problematiza a condição econômica das famílias pobres, a falta de Educação Sexual, de acesso à saúde sexual e reprodutiva. A mortalidade infantil é maior entre crianças negras, a falta de creches, pediatras, escolas e cultura para os filhos dessas mulheres negras e pobres. A justiça reprodutiva também problematiza quando essa mulher é mãe, sobre as condições de ser mãe com dignidade. A média de amamentação no Brasil é de 54 dias, quando a Organização Mundial de Saúde recomenda 6 meses exclusivamente, e com introdução alimentar até dois anos, ou mais. E são as mulheres negras as que menos amamentam, por estarem na informalidade não têm licença maternidade para exercerem o direito de amamentar. As que outrora amamentaram os filhos dos senhores e das sinhás, hoje, não podem amamentar o próprio filho.

E todos os dias, nos jornais, vemos milhares de mulheres negras que têm o direito da maternidade e corpos violados e suas vidas marcadas por falta de dignidade em serem mulheres negras em um mundo sexista e machista.

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Kethelen Romeu, uma jovem negra que rompeu tantas barreiras do racismo: como a gravidez precoce, a evasão escolar, o trabalho informal, tinha um companheiro presente e planos de comprar uma casa própria, não venceu o terrorismo de Estado. Quero lembrar que tiraram Susy de sua mãe, Andrielle, porque sua mãe era pobre. Ou ainda que Janaína, mulher em situação de encarceramento, foi submetida à laqueadura contra sua vontade, por decisão judicial. Segundo o Juiz: “será eficaz para salvaguardar a sua vida, sua integridade física e a de eventuais rebentos que poderiam vir a nascer e ser colocados em sério risco pelo comportamento destrutivo da mãe”. Dona Mirtes que perdeu seu pequeno Miguel, porque a patroa se recusou a olhar o menino. Uma mulher negra com um bebê no colo, enquanto um joelho de um policial é colocado no pescoço da mulher, com UM BEBÊ NO COLO.  Elas e tantas outras mulheres negras que dia a dia tem seus direitos sexuais e reprodutivos violados em um país em que se espera que os filhos das mulheres negras sejam explorados por um sistema que enxerga nos jovens pretos e periféricos mão de obra barata e lucro para o Capital.

Por fim, não podemos falar de justiça reprodutiva, no Brasil, sem responsabilizar o papel do cristianismo neste cenário desolador no qual as mulheres negras vivem. A Religião Cristã tem papel significativo na sustentação moral da escravização, na submissão das mulheres ao poder patriarcal e, portanto, na manutenção de uma sociedade que explora mulheres.  Em 1821, Jean-Baptiste Debret pintou um quadro chamado Jovens Negras indo à Igreja para serem batizadas. Esse quadro mostra mulheres que seriam violadas sexualmente, exploradas economicamente e torturadas nas fazendas indo para o Batismo, em uma Igreja Católica. Ora, a igreja não sabia as atrocidades que aconteceriam nas fazendas escravocratas? Mas as Ordenações Filipinas diziam que todo escravo deveria ser batizado, o importante era que estivessem sob o poder eclesiástico da Igreja. Ao pensar então Justiça reprodutiva, temos que considerar a intersecção de cinco eixos opressivos: a exploração, a colonização, a escravização, o patriarcado e a escravização.

São esses cinco eixos articulados que fazem com que ao longo dos séculos as mulheres negras ficassem neste lugar de desumanização. No contexto colonial, para as mulheres cristãs de modo geral, ser mãe era uma obrigatoriedade, com objetivo de manter o poder patriarcal. As mulheres negras geravam lucro direto para os escravocratas cristãos. Ou seja, estavam submetidas ao poder masculino, como as brancas, mas também ao econômico exploratório escravocrata.

Ou seja, a união entre poder econômico e religioso garante que a perpetuação das mulheres negras no lugar de submissão moral e econômica. A igreja, por meio da demonização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, da submissão a qualquer custo ao poder masculino, está garantindo que elas tenham muitos filhos que serão explorados e mortos. Os presídios estão cheios de meninos negros, a polícia mata todos dias meninos negros, como forma de controlar essa massa de mão de obra barata que faz com que o capital lucre.

E você pode me perguntar: como a religião cristã está articulada com a prisão e morte de meninos negros? Ora, não é o cidadão de bem brasileiro cristão que acredita que bandido bom é bandido morto? A mesma Igreja que apoiou a escravização de pessoas negras, hoje, faz “arminha” dentro da Igreja, no palco da Marcha para Jesus e vota em miliciano. E essas mortes, são o que chamo de dispositivo de controle, para que se explore a massa, é necessário que ela tenha medo. É o medo do pecado e o medo da bala que possibilita que o Capital e a Igreja sigam submetendo os corpos negros brasileiros. E isso é sobre Justiça reprodutiva, poder ter nossos filhos vivos e livres, poder ter nossos corpos livres e ter dignidade de vida, de trabalho e de decisão. Hoje, o fundamentalismo religioso é o grande inimigo das mulheres negras. É o fundamentalismo religioso que marcha contra nossos direitos e corpos, e contra nossos filhos. A justiça reprodutiva, assim, é sobre termos a liberdade de viver, vermos nossos filhos viverem sem medo, sem morte e sem opressão.

Notas

  • 1
    https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/11/no-brasil-aborto-vitima-mais-mulheres-negras-do-que-brancas.shtml