O diálogo nosso de cada dia: olhares ecumênicos sobre o cotidiano
Plural! Essa palavra tem se tornado um dos adjetivos mais recorrentes da atualidade. Nós a temos utilizado para falar sobre nossas identidades, relações e experiências, que se tecem no âmbito da cultura e da sociedade. Nesse rol de assuntos também estão as religiões, as espiritualidades e sensibilidades para o sagrado. Em síntese, a categoria é um adjetivo potente para comunicar o fato de que vivemos em um mundo de muitos mundos, ou, numa metáfora de raiz etimológica ecumênica, numa “casa de muitas casas”.
Contudo, seria equivocado pensar que a pluralidade é algo de agora. Desde sempre, a alteridade é marca de nossa existência e presença no mundo: nós fomos, somos e seremos sempre “muitos outros”. Talvez agora, nesse momento da história, em que as fronteiras reais e simbólicas são mais próximas a nós, ou nós delas, é que tenhamos consciência dos desafios e possibilidades de uma coexistência interdependente na diferença. E isso não é uma escolha, mas uma condição para que nossos mundos e casas (co) existam.
Essas duas lentes – pluralidade e coexistência – são muito oportunas para pensarmos a irrenunciável e urgente experiência dialógica. Sim, este é um texto de muitos adjetivos, pois entendemos que eles são vias de acesso ao profundo das palavras. Feita essa anotação linguística, revisitemos o lugar que o diálogo ocupa no universo plural que nos envolve, e o que significa, de fato, dialogar.
Em geral, somos tentados a pensar o diálogo como meio de atingirmos algum resultado que, de preferência, nos seja favorável, ou como a manutenção de uma via de acesso mínima à outra realidade. Ou seja, num sentido de autoproteção e autopreservação, assumimos o diálogo mais em vista de nós mesmos que de nossos interlocutores e interlocutoras.
Há uma expressão muito feliz do Papa Francisco no documento Evangelii Gaudium (n. 244) que fala da dimensão artesanal da abertura à alteridade. Quem trabalha com arte sabe que o processo de concepção e criação artística tem temporalidade própria. Tem mais a ver com intuição do que com racionalidade, com processo do que com resultado. Nenhuma obra de arte é alheia à pessoa que a criou, senão uma das formas de comunicação mais precisa daquilo que ela é e do sentido que move sua existência. De outra parte, a percepção estética é provocadora da sensibilidade do interlocutor, seja ele pessoa, coletivos, igrejas, culturas, entre outros.
O que estamos querendo considerar com isso é que há uma grande possibilidade de que nossos entraves na construção de uma coexistência na pluralidade residam no fato de considerarmos o diálogo mais como compartilhamento de ideias e conceitos, e não de sensibilidades; de focarmos no resultado a ser atingido e não na honestidade relacional no percurso a ser feito conjuntamente. Nessa perspectiva, há que se pensar no diálogo como exercício aprendente, no qual vamos progredindo à medida em que assumimos à experiência artesanal e cotidiana de abertura à alteridade.
Para quem tem a tentação de pensar nisso como algo excessivamente emotivo e abstrato, tentemos recordar a última vez (que deve ser recente) que nos vimos tentados a abreviar uma conversa ou uma relação pela ânsia de chegar a uma conclusão prática e imediata. Relações diplomáticas tendem a ser mais eficientes e rápidas do que a teimosia transformadora de dialogar desde dentro ao encontro do profundo do/a outro/a, na ânsia de conhecermos melhor a ele/a e a nós mesmos/as.
Ecumenismo é uma das palavras que traduz nosso compromisso dialógico, especialmente em relação à pluralidade religiosa. Se por um lado percebemos a contribuição singular das religiões e igrejas como sensibilizadoras das interioridades para diálogos aprendentes, por outro encontramos muitas narrativas religiosas instrumentalizadas para justificar posturas autocentradas e intolerantes. Isso não é somente uma lástima; é uma contradição, especialmente quando o espaço público se torna uma arena de disputa de múltiplos interesses transvestidos de roupagem religiosa.
Se a via legal permite zelar pela liberdade de crença enquanto direito fundamental, a lei por si só não é educadora das subjetividades. O artesanato cotidiano do diálogo exige um outro nível de engajamento que, para as tradições religiosas, envolve seus referenciais espirituais e éticos. Uma crença que se estabelece sobre a negação da outra diz muito mais sobre as inconstâncias de seus intérpretes do que sobre uma proposta de transcendência, e muito mais sobre autorreferência que coexistência. O diálogo nosso de cada dia é esse discernimento lúcido que ausculta a outra realidade como o respeito que dignifica e que assume a pluralidade como possibilidade de mútuo aprendizado.
Raquel de Fátima Colet – Filha da Caridade da Província de Curitiba. Doutora em Teologia pela PUCPR. Assessora de Pastoral – Rede Vicentina de Educação.