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A Mangueira mostrou a saia de d*us – mas não ousou levanta-la

A Mangueira mostrou a saia de d*us – mas não ousou levanta-la

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Desde que a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira anunciou o samba enredo para o desfile do Carnaval de 2020 no Rio de Janeiro o povo da religião se alvoroçou. Muita gente saiu em defesa da escola antes mesmo que ela fosse acusada de alguma coisa. Houve textos, vídeos, reportagens e muita gente analisando e demonstrando apoio à proposta. A própria Escola, no enredo, já anteviu as críticas: “Vão te inventar mil pecados”.

Eu mesmo não me lembro de ter ficado tão empolgado para assistir a um desfile de Escola de Samba. Pelo que vi nas minhas redes sociais, muita gente do campo da religião, praticante ou estudioso e estudiosa, também ficou excitado para ver como tudo aquilo que se falou e discutiu ao longo dos meses que antecederam o desfile se materializaria na Avenida Sapucaí. E foi um espetáculo, sem dúvida.

Lideranças religiosas abriram o desfile da Escola representando distintas tradições religiosas pedindo respeito à liberdade religiosa. Na transmissão da Rede Globo todo mundo só ficou sabendo disso no final, quando uma das lideranças foi entrevistada enquanto as outras compunham o quadro.

Ricardo Moraes/Reuters

A comissão de frente apresentou uma linda coreografia em que Jesus foi retratado como um morador do Morro da Mangueira, que se diverte em bailes da comunidade e que, junto com seus amigos (eram todos homens nessa primeira apresentação), é perseguido pela polícia, morre e ressuscita na favela – e onde, no restante do desfile, reencarna. Essa era a história que a Escola queria contar: o Jesus da Gente, encarnado na vida e nas pessoas do Morro da Mangueira e de tantas periferias do mundo.

O pastor Henrique Vieira veio como um Jesus em situação de rua saudado pelos ramos da ala “A entrada triunfal” e foi seguido por um Jesus combativo interpretado por Humberto Carrão no carro “O templo transformado em mercado”. O ponto alto, sem dúvida, foi o Jesus crucificado no carro alegórico “O calvário”, apresentado como um jovem negro da periferia chacinado com tiros, evidenciando o genocídio da juventude negra.

Apesar da beleza, da coerência e da potência do desfile havia um cheiro de naftalina no ar. Talvez seja porque tanto se falou e tanto se esperou desse desfile pelo que ele prometia, ou talvez o enquadramento televisivo não tenha dado a correta dimensão do que se passou na Sapucaí. De qualquer modo ficou que a sensação, inclusive depois da entrevista com as lideranças religiosas, de que algo estava faltando ou aquilo já era notícia de ontem. Em certo sentido, não houve surpresas ou novidades, ainda que a mensagem transmitida seja muito importante e o meio utilizado seja de um alcance multitudinário.

Vários outros elementos descritos e discutidos em outros artigos e reflexões sobre o desfile dão conta de uma infinidade de detalhes que o enquadramento da televisão não mostrou. Percebe-se uma forte influência da Teologia da Libertação na forma como a narrativa sobre Jesus foi contada e atualizada na realidade das comunidades empobrecidas e em rostos de pessoas em situação de vulnerabilidade. A denúncia e a crítica social, mais até do que a crítica política e econômica cantada na letra, pois não se viu o “messias de arma na mão”, eram fortes, contundentes e renderam elogios até de comentaristas da Rede Globo que durante todo o desfile reafirmavam a pertinência e a importância da narrativa contada através das fantasias, carros alegóricos e coreografias.

A Mangueira fez um carnaval decente e comportado, como a teologia da libertação que, depois de ser profundamente revolucionária e indecente nas décadas de 1970 e 1980 – por isso perseguida e silenciada, em grande medida ajustou-se aos cânones da decência institucional religiosa, acadêmica e do mercado que precisa de governos autoritários e moralizantes para impor as suas próprias penitências na forma de desigualdade social e violência sistêmica depois de alguns períodos e algumas experiências de conciliação aparente.

Cris Serra questionou, em suas redes sociais, a ausência de representação de Jesus como pessoas trans, uma vez que estas compõem o grupo social que mais sofre com a violência e morte por assassinato no Brasil e são uma das faces mais brutais do empobrecimento e da exclusão social. Em seu post, Cris afirma que essa ausência possivelmente se deva a escolhas possíveis dentro de um cenário previsível de repercussões e consequências para a Escola e seus e suas integrantes.

Além da ausência de pessoas trans nas representações de Jesus, o que mais chamou a atenção foi a forma como gênero e sexualidade foram apresentadas (ou apagadas) pela Escola. Nunca se viu um desfile com tanto pano cobrindo os corpos e impedindo os movimentos de quem desfilava pela avenida. Talvez por isso, como afirmaram alguns e algumas comentaristas, a Mangueira não “empolgou tanto”. As fantasias, muito bem produzidas e acabadas, pareciam o reflexo de uma preocupação em não chocar expectadores e expectadoras ou provocar determinadas lideranças religiosas e políticas (vide o caso de Viviani Belebony), e angariar a simpatia de muitas pessoas e ter uma ampla aprovação.

E foi no corpo de mulheres que a decência e a respeitabilidade foram garantidas. Alcione veio de Maria com uma fantasia que expressava simplicidade e recato (lembrando “Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres”) e uma das coisas sobre a qual mais se falou sobre a sua participação foi o fato de ela ter cortado e pintados as unhas com discrição.

Reprodução

Ela mesma referiu-se à roupa e à manicure como formas de respeito ao sagrado. Maria, na representação da Mangueria, segue sendo um simulacro para a submissão de outras mulheres. A não ser que a gente imagine ela cantando “Adoro sua mão atrevida/ Seu toque, seu simples olhar/ Já me deixa despida / Mas saiba que eu não sou boba/ Debaixo da pele de gata/ Eu escondo uma loba”. Ah essas unhas longas e coloridas e essa voz grave e aveludada.

Já a rainha da bateria Evelyn Bastos, Jesus-mulher, teve seu corpo coberto e sua penitência foi não sambar. Resiliente com sua túnica púrpura ela falava dos índices de feminicídio no Brasil perguntando se essa seria a realidade caso, no imaginário religioso, coubesse a ideia da presença de Jesus no rosto e no corpo de uma mulher negra.

O sinal de respeito à religião e ao sagrado era a roupa que cobria seu corpo e a impedia de sambar. Mas e por que o corpo e os movimentos da dança seriam considerados desrespeitosos? O corpo seminu, as roupas consideradas insinuantes e o requebrado considerado sensual justificariam o apedrejamento da Escola por sua heresia – ou a violência e o assassinato de mulheres cotidianamente? Não gritam as feministas em todo o mundo que “a culpa não era minha, nem onde estava nem como me vestia”?. Para ser respeitosa (e respeitada): túnica cobrindo o corpo, nada de plumas e movimentos contidos. Um Jesus-mulher decente pra não chocar ninguém será o Jesus da Gente?

Buda Mendes/Getty Images

A crítica feminista, assim como a crítica da diversidade sexual, ficou curta, pois não se conectou com a crítica social e política. Jesus negro, índio, pobre e mulher pode até ser, mas decente, recatado e humilde. Como a romantização e infantilização do “pobre” na Teologia da Libertação e das mulheres na Teologia Feminista da Libertação criticadas por Marcella Althaus-Reid que foi quem disse que fazer teologia é “levantar a saia da Deus”.

Não sei se meus irmãos e minhas irmãs se divertiram abrindo o desfile com seus paramentos que também não pareciam muito apropriados para a ocasião. Tudo bem sóbrio e respeitável. Assim como a Escola que desfilou pela avenida, protegendo-se legitimamente dos ataques de extremistas, intolerantes e fundamentalistas. Toda essa respeitabilidade e decência rendeu muitos elogios e reflexões por parte de colegas do campo da teologia e dos estudos da religião. Mas vocês não sentiram o cheiro de naftalina?

É certo que a mensagem do Jesus dos e das pobres ainda não chegou em muitos lugares ou tem sido sobreposta pelo Jesus sorridente das bênçãos em forma de sucesso econômico pregado nos mercados da fé. E também é certo que a Mangueira cumpriu um papel importante no atual cenário político, social e religioso brasileiro. Ela nos mostrou a saia. É nossa tarefa descobrir o que tem debaixo dela. Fica a pergunta:

“Se eu levantar a saia de deus… o que me acontece?

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Se eu levantar a saia de deus… o que eu vou ver?”

(Nancy Cardoso)

Assim como na teologia e nos estudos da religião o desfile da Mangueira segue um roteiro convencional e frustra as expectativas mais exuberantes e excessivas de justiça social e sexual radical. O estandarte verde e rosa cobre o sexo do Jesus-menino-negro na cruz barroca (como se esse pudor estivesse presente na violência praticada contra a juventude negra da periferia) e continuamos sem saber o que há debaixo da saia de d*us.

Ainda assim, Mangueira, estou do teu lado! “Não tem futuro sem partilha, nem messias de arma na mão”!


Referências

ALTHAUS-REID, Marcella, Teologia indecente,  entrevista,  07/10/2009, revistaepoca.globo.com/Epoca/

CARDOSO, Nancy. “Fazer teologia é levantar a saia de Deus”. www.pavablog.com/2013/08/11/

GEARA, Ivone; BINGEMER, Maria Clara. Maria, mãe de Deus e mãe dos pobres.