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Travesti não é bagunça, é Reverenda!

Travesti não é bagunça, é Reverenda!

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Antes de começar a ler esse artigo, preciso que saiba: esse é um texto de comadres! Não tem como eu começar a escrever sem me emocionar com a ideia de que estarei presente neste histórico momento para o cristianismo inclusivo e afirmativo da América Latina. Minha comadre, Alexya Salvador, será ordenada clériga da Fraternidade Universal das Igrejas da Comunidade Metropolitana.

A Igreja da Comunidade Metropolitana (ICM) é uma denominação cristã autodenominada “radicalmente inclusiva”. Fundada em 1968, em Los Angeles, nos Estados Unidos, pelo Reverendo Troy Perry, a denominação já existe no Brasil há mais de uma década. Na capital paulista, é conhecida como Igreja da Comunidade Metropolitana de São Paulo, e foi lá que Alexya decidiu ser quem é – mulher, esposa, mãe, pastora, reverenda (tradicionalmente, título de ministro/a da palavra dentro das igrejas reformadas). Sua trajetória é bem conhecida pela mídia nacional (e internacional). Alexya participou de diversos programas e entrevistas para debater pautas como transgeneridade, adoção, política e, é claro, cristianismo. Muitas das fotos de Alexya em sites de busca mostram uma mulher trans paramentada com uma estola sacerdotal.

A estola em Alexya diz muito sobre o impacto de sua imagem no ambiente cristão hegemônico – heresia, abominação, pecado são alguns dos termos usados para identificar sua presença no “tão sagrado” púlpito eclesial. Entretanto, o que para muitos é uma ofensa, para Alexya é a experiência do Sagrado em sua mais profunda versão – o amor. E é a manifestação desse amor, vínculo perfeito, que fez com que Alexya tomasse a importante decisão de percorrer o caminho necessário para ser ordenada a primeira clériga trans da América Latina.

O ambiente no qual Alexya se propõe a ser clériga é muito desfavorável não somente ao seu sacerdócio, como à sua sobrevivência. De acordo com relatório da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT do, então, Ministério dos Direitos Humanos (2018), segundo Wanderley Preite Sobrinho (2019), entre os anos de 1963 e 2018, 8027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Evidentemente, somente nos anos recentes esses números começaram a se aproximar da realidade, tendo em vista a subnotificação desses dados. Segundo o relatório, entre 2011 e 2018, foram denunciados ao Disque 100, ao Transgender Europe e ao Grupo Gay da Bahia, 4422 assassinatos por LGBTfobia, o que configura uma vítima a cada 16 horas.

Diante desse fato, segundo relatório anual da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 163 travestis e transexuais foram mortas somente em 2018. O número não é somente alarmante, é um atentado à nossa humanidade. Revela uma realidade na qual negamos ao ser humano o direito, não somente à dignidade, mas à existência. São vidas que não são vividas. Vidas matáveis.

É justamente nesse ambiente que Alexya, ao enfrentar a “violência da rua” por ser quem se dignou a ser, agora, mais do que nunca, enfrenta a “violência do templo” ao assumir seu compromisso clerical com uma tradição religiosa que negou, e nega, durante séculos o direito às mulheres do púlpito e da produção teológica. Sendo possível afirmar isso sobre as mulheres, quão mais duro é compreender a presença de um corpo trans nesse lugar legitimado pelos homens para os homens.

Mesmo diante de uma realidade tão desanimadora, Alexya consagra-se como uma mulher transgênera que ocupa os espaços a ela anteriormente negados. Os números da violência contra pessoas transgêneras no Brasil são enfrentados com o desejo profundo do cumprimento vocacional. O caminho percorrido por nossas mártires travestis, transexuais e transgêneras, como a dona da frase desse artigo – “travesti não é bagunça” – a já imortal Luana Muniz, permitiu que hoje pudéssemos dizer: “travesti é reverenda sim, e o que mais ela quiser ser”!


Para saber mais:

 VEJA TAMBÉM
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Antra
antrabrasil.org

Igreja da Comunidade Metropolitana
www.mccchurch.org

Luana Muniz
www.locus.ufv.br

Relatório da Diretoria de Promoção dos Direitos LGBT
noticias.uol.com.br/cotidiano/